Inflação, Planos e Moedas: Saga Brasileira


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O escrito que segue foi adaptado como síntese do livro de LEITÃO, Miriam. Saga Brasileira: a longa luta de um povo por sua moeda. São Paulo: Record, 2011.

Por Marcos Bau Brandão

Se puder dar um conselho, digo-lhes que antes da leitura vale muito assistir o vídeo abaixo, onde a própria Miriam Leitão fala sobre o porque de resolver escrever nossa história monetária como saga brasileira, com enfoque para o período da redemocratização à estabilização da nossa moeda.

A autora leu essa síntese e escreveu o comentário acima no twitter.

Desde a época de D. João VI, o governo cunhava moedas para financiar os gastos da corte gerando inflação. O gasto com conflitos de independência também contribuíram.

O primeiro ministro da fazenda, Rui Barbosa, permitiu o aumento descontrolado da emissão de moeda com uma política chamada encilhamento (crédito livre e sem lastro para desenvolver a indústria). O crescimento do trabalho assalariado aumentava em muito o dinheiro em circulação.

A quantidade de dinheiro circulante gerou uma bolha* que estourou em crise causando falências e altíssima inflação, pois a lógica que eles usavam era a de que basta imprimir dinheiro que a riqueza da recém proclamada república estava garantida.

*Bolha significa o aumento da especulação, quando a emissão e quantidade de dinheiro circulante é muito maior do que o normal. Com isso os preços tendem a subir cada vez mais, aumentando a inflação, e a moeda é enfraquecida pela grande oferta no mercado (para tanto, a bolha estoura devido à inflação muito alta, associada a uma moeda maxi desvalorizada). O mesmo acontece atualmente com as bolsas de valores: as sucessivas altas nos títulos fazem pessoas que são amadoras no processo investirem cada vez mais, inflando artificialmente a ‘bolha’. Quando os verdadeiros investidores percebem que os preços estão irreais vendem suas ações, fazendo cair os preços e o estouro da bolha especulativa.

A contenção dessa bolha inflacionária veio no período do ministro Joaquim Murtinho, no governo Campos Sales (1898-1902), quando cortou o déficit orçamentário e reduziu o direito do governo de emitir moeda. A inflação caiu para uma média de 15% ao ano e houve forte crescimento (admite-se que a medição dos índices era completamente tosca nessa época).

O pós crise de 1929 fez a revolução de 1930 construir um novo país sob a crise externa do café. A ideia de Getúlio Vargas era a de um Brasil cada vez mais urbano e industrial e, com o crescimento do mercado interno os índices de inflação chegam a patamares de 20% ao ano na década de 1940.

Até 1942 a moeda brasileira era o mil-réis, quando foi implantado o cruzeiro mostrado na figura que segue.

Tiradentes na nota de 5.000 Cruzeiros (Cr$ 5.000,00). Essa cédula circulou entre 1942 e 1974. Fonte: Banco Central.

Com o crescimento industrial em curso, na década de 1950, acreditava-se que a inflação era uma espécie de combustível para o crescimento, pois junto com seu aumento vinha o aumento da circulação de capital (o índice inflacionário ao final da década de 1950 era de 38%). O problema nesse processo é que os salários nunca acompanham a subida de preços do mercado e só na década de 1980 é que os economistas do governo irão entender que a queda da inflação aumenta a capacidade de compra dos salários.

Na década de 1960 foi incorporado no discurso autoritário dos militares o combate à inflação, tanto que o governo pós-golpe militar de 1964 criou a correção monetária**, que reajustava os preços pela inflação passada, e cortou três zeros, chamando a moeda de cruzeiro novo (logo depois abandonaram o ‘novo’ e a moeda voltou a ser só cruzeiro).

**Correção monetária é um ajuste de distorções no valor da moeda para se obter seu valor real. Para que isso aconteça, toma-se o índice de preços do custo de vida no período que ela será aplicada.

 A correção monetária fez ajustes que derrubaram a inflação de 80% para patamares de 20% ao ano. Mas o trabalhador era quem mais sofria, porque a projeção feita para a correção dos salários sempre era superada pela subida de preços, isto é, combatiam a inflação com arrocho salarial ao diminuir o poder aquisitivo do povo. Para os militares, a exportação era o mais importante para honrar os compromissos de pagamento dos juros da dívida externa crescente – era a chamada ‘modernização conservadora’, na qual o país crescia economicamente, mas não havia desenvolvimento social ou o investimento voltado para a população que mais necessitava.

Conforme arquivo da Revista Veja, “no início do regime militar, o Brasil vivia um clima de estagnação econômica e aceleração inflacionária. Os militares decidiram implantar o Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG), que reduziu a inflação de 91,8% ao ano, em 1964, para 22% ao ano, em 1968, mas não conseguiu alcançar as metas de crescimento programadas […] Os índices começaram a se estabilizar, sobretudo no governo do general Garrastazu Médici, com o chamado “milagre econômico”. Entre 1969 e 1973, a economia brasileira registrou taxas de crescimento que variavam entre 7% e 13% ao ano [e a dívida externa crescia, pois já estava em torno dos US$ 15 bilhões…] O suposto milagre pautado no capital externo, no entanto, foi efêmero. O crescimento econômico começa a declinar a partir de 1973. No final da década de 1970, a inflação chega a 94,7% ao ano. As indústrias não conseguem planejar investimentos, as pessoas perdem poder aquisitivo”.

Getúlio Vargas na nota de dez cruzeiros (Cr$ 10,00). Essa cédula circulou entre 1967 e 1972. Fonte: Banco Central.

A produção industrial tinha crescido em média 7% ao ano, de 1968 a 1980. A execução de corte do déficit público e a redução de moeda em circulação – indicados pelo FMI – foi um choque para o Brasil, porque em 1981 a produção industrial recuou 12%, o desemprego cresceu e o investimento público e privado despencou. Era o início da década perdida, pois com tais medidas, a inflação recuou apenas 10 pontos, de 110 para 100%.

Importante ressaltar que, na década de 1970, havia uma linha de crédito abundante para os países da América Latina, facilitando o endividamento. As crises do petróleo (em 1973 e 1979) obrigaram os EUA a aumentar as taxas de juros, devido ao aumento da inflação seguido da diminuição das exportações.

Em 1982, o México declarou moratória (calote) da dívida e isso dificultou o acesso ao crédito externo da América Latina (neste caso leia-se: do Brasil) com os EUA. Em 1983, a saída do país foi assinar acordo com o FMI, que obrigava o controle do déficit público para permitir a rolagem da dívida e a concessão de novos empréstimos.

No mesmo ano de 1983, o governo teceu uma nova desvalorização do cruzeiro*** (a primeira foi em 1979), para aumentar as exportações, mas a inflação subiu para 200%. Detalhe é que a dívida externa crescia na mesma proporção que a inflação. O final do regime militar fôra de recessão e desemprego. A população tinha ido às ruas com exasperação no ano de 1983, em protestos contra a crise (LEITÃO, 2011, p. 49).

***A desvalorização da moeda é a forma que o governo tem de deixar o produto importado mais caro (desestimular as importações) e facilitar as exportações. No Brasil foi feita também pelos governos Vargas (1930-45) e Dutra (1946-50).

Em 1985 veio a redemocratização, com eleições indiretas elegendo Tancredo, que morreu na véspera da posse. Assume seu vice, José Sarney. Conforme Leitão (2011, p. 45, 46), “a Nova República tinha prometido “Esperança e Mudança”, como dizia o lema do PMDB, na época o partido que abrigava também as lideranças que depois formariam o PSDB. E negava as duas promessas, ao manter a mesma política do governo militar […] Sarney era um presidente frágil [neodissidente da ditadura e tolerado em nome do futuro democrático que governava, sob a tutela do PMDB de Ulisses Guimarães]. Identificado demais com o regime militar, por tempo demais ele fora presidente do PDS – antiga Arena -, o partido inventado pelos militares”.

O ano de 1986 foi o ano do lançamento do Plano Cruzado, quando a inflação fechou em 76%. O governo decretou o congelamento de preços para conter a inflação e o gatilho salarial quando esta alcançasse 20% ao mês. As donas de casa viraram “fiscais do Sarney”, que denunciavam se os preços estivessem além da tabela de congelamento. Como tinham preços controlados, muitos dos bens duráveis sumiam do mercado (desde carros até itens da cesta básica nos supermercados servem como exemplo) e só ressurgiam se o consumidor pagasse o ágio (preço excedente em cima da tabela, também chamada de tablita).

Entre 1986 e 1990, o Plano Cruzado cortou três zeros da antiga moeda que era o Cruzeiro. As cédulas, que já estavam em circulação, foram carimbadas com a nova moeda, o cruzado. Veja o carimbo na parte central da cédula com o rosto de Juscelino Kubitschek. Fonte: Banco Central.

O ágio era só uma das distorções do plano. Em pouco tempo as mercadorias da cesta básica, como carne, leite e feijão também passaram a sumir das prateleiras e, quando se tinha notícia de haver produto em um determinado supermercado, a casse média corria e comprava grande volume para estocar. Em suma, um regime de guerra que fez a farra do consumo junto com o plano Cruzado fracassar no segundo semestre de 1986. Num país fechado, em que havia tanta barreira à importação, o governo decidiu importar diretamente. Foi um desastre, com o governo gastando 2 bilhões de dólares sem conseguir fazer chegar a mercadoria a tempo na prateleira, por causa da burocracia, perpetuando assim o desabastecimento. Isso contribuía para o sobrepreço ilegal, chamado ágio, que muitos dos consumidores eram constrangidos a pagar.

O governo lançou um plano sem pé nem cabeça, chamado de Cruzado II (liberou os preços, acabou com o gatilho salarial e aumentou a carga tributária), pois a inflação – no início de 1987 – voltava ao patamar de 16% no mês de fevereiro. A economia entrou em colapso e o Brasil não tinha mais reservas cambiais. Sarney anuncia o calote da dívida externa e o país passou a ser tratado como caloteiro. O ministro da fazenda Dilson Funaro foi demitido em maio de 1987, dando lugar a Bresser Pereira que anunciou o plano Bresser em junho de 1987.

Empresários previam um novo congelamento e aumentaram os preços antes do plano ser anunciado. A estratégia era anunciar, por um preço muito alto, a ponto de dar um desconto para vender, mas não deu certo porque a unidade criada pelo plano, para fazer a conversão dos preços e salários (Unidade de Referência de Preços – URP), defasou os salários em 26%, coisa que em anos depois a justiça ordenou a devolução. Resumindo o entendimento, no plano Bresser os produtos foram remarcados preventivamente a valores que os salários não conseguiam obter poder de compra e, sendo assim, aconteceu o contrário do plano Cruzado – as mercadorias sobravam nas prateleiras e os carros, que tiveram um aumento de 80%, ficaram encalhados nos pátios das montadoras.

No final do ano de 1987 a inflação anual bateu o patamar de 366%, Bresser foi demitido e entrou Maílson da Nóbrega, que ficou por mais de dois anos no cargo de Ministro da Fazenda. Mesma época em que o país conheceu as mais altas taxas de inflação da sua história.

Maílson começou mentindo sobre os rumores de um novo plano (ele sempre negava). Em meados de janeiro de 1988, o plano Verão foi lançado criando uma nova moeda, o cruzado novo (voltou o congelamento dos preços e salários e modificou o índice de rendimento das cadernetas, gerando perdas de mais de 20% aos correntistas). Durou menos de um verão, pois dois meses depois a inflação voltou a uma crescente, batendo em 6% e nos meses subsequentes viria com força total.

Cédula de 50 cruzados novos (NCz$ 50,00). Circulação de 1989 à 1992. Fonte: Banco Central.

No final do ano de 1989, a inflação chegou a 55% ao mês e as aplicações bancárias rendiam mais do que a produção. Assim, quem tinha dinheiro passava a viver de especulação, pois em março de 1990 o patamar hiperinflacionário chegou aos 83% (4.853% no ano). O presidente Sarney dizia que não se podia fazer nada porque a culpa era da crise internacional. Na verdade, Sarney estava mais preocupado com o tempo que passava descansando em sua ilha particular, na baía de Curupu/MA. Para se ter uma ideia, a inflação era de 3 a 4% ao dia, números que hoje respondem à inflação anual.

O comercial mostrado no vídeo anterior resume que os tempos atuais, época em que as crianças não tem a mínima noção do que significa inflação, são bem diferentes da época de Sarney, quando elas até faziam propaganda de combate a esse mal, pois sabiam que a palavra inflação era das mais pronunciadas no dia a dia e tinham a noção que a pronúncia do que infla (ou cresce) associada a um sufixo ‘ão’ virava sinônimo do que era o mais prejudicial no que diz respeito à alta nos preços dos produtos e serviços no mercado em geral.

Fernando Collor foi eleito presidente pelo PRN (aliado ao PFL, hoje DEM e PDS, hoje PP) e antes da posse pediu ao antigo ministro, Maílson da Nóbrega, que anunciasse 3 dias de feriado bancário, o que foi feito. No terceiro dia, a equipe econômica – chefiada pela ministra Zélia Cardoso de Melo – anunciou o mais cruel, tresloucado e violento plano econômico sobre as famílias brasileiras. A invasão da vida dos cidadãos através do confisco das poupanças. Era o plano Collor.

As empresas passaram a não ter dinheiro nem para produzir, nem para pagar os funcionários e passaram a demitir, causando uma onda de infelicidade. A liquidez do mercado era dada pelo varejo, pois os únicos cruzados que ficaram na mão da população eram usados para comprar comida. Os eletroeletrônicos deixaram de vender, estagnando a economia. A inflação baixou de 85%, em março, para 14%, em abril de 1990, mas foi naquele ano de 1990 que o país teve a pior recessão da sua história.

Além do confisco generalizado do governo Collor houve a diminuição da participação do Estado na economia pelas privatizações (que já haviam sido iniciadas no governo Sarney) e pela abertura da economia ao ingresso de produtos importados, por meio da redução e da eliminação de impostos sobre as importações (da forma que foi feita essa abertura, várias pequenas e médias empresas do mercado nacional quebraram, aumentando em muito o desemprego).

A ministra Zélia não tinha o mínimo preparo para o cargo (note isso em pouco mais de 1 minuto no vídeo que segue), pois não sabia explicar um plano tão amalucado e inacreditável e pior, era indiferente à tragédia que tinha causado. A inflação voltou e Collor anunciou em janeiro de 1991 outro plano, o Collor II. Congelou os preços do varejo e liberou o das indústrias, gerando preços artificiais no mercado. Houve uma queda brutal nas vendas.

Em maio de 1991 assumiu Marcílio Marques Moreira, que não lança plano algum, apenas começa a devolver o dinheiro do confisco (ao final da devolução, os correntistas perderam cerca de 40% do poder de compra do capital original – processos na justiça para ressarcimento tramitam até hoje).

Em 1992, Collor foi deposto por corrupção. No último momento entregou carta de renúncia ao senado para escapar do impeachment. O senado não aceitou e o presidente teve seus direitos políticos cassados por 10 anos.

Assumiu o vice Itamar Franco, no ano que o PIB ao invés de crescer, tinha recuado 0,5%. É com o ministro da fazenda Fernando Henrique Cardoso que o Brasil estabilizará a economia, através do Plano Real em 1994.

Veja abaixo ofertas em cruzeiro no período inflacionário de 1993. O curioso é que o nome do supermercado era Real, mesmo nome da moeda que iria estabilizar os preços no país.

Fernando Henrique Cardoso era ministro das Relações Exteriores do governo Itamar Franco e foi remanejado para o ministério da fazenda. Era o quarto ministro da fazenda de Itamar em sete meses. A imprensa queria saber como o novo ministro ia fazer o país se livrar da inflação que chegava a 40% ao mês.

Concretamente, o que Fernando Henrique tinha nas mãos? Uma meia dúzia de assessores. Alguns diplomatas escolhidos no ce­leiro de bons burocratas que sempre foi o Itamaraty: o executivo Clóvis Carvalho, trazido por ele da iniciativa privada, mas que tinha escassa capacidade de entender a sofisticação dos instrumentos que seriam usados na estabilização; Edmar Bacha, economista maduro, que dominava a teoria dos planos de desindexação, mas escaldado pelo doloroso fracasso do Cruzado, cansado do sacrifício de morar em duas cidades já dava sinais de querer ir embora. Sinais que angus­tiavam Fernando Henrique, que achava a maturidade e lucidez de Bacha essenciais. Winston Fritsch e Gustavo Franco eram dois bons eco­nomistas, mas inexperientes em governo. Gustavo Franco é o realiza­dor, capaz de transformar ideias em projetos concretos, com enorme capacidade de trabalho e rara determinação para ocupar espaços.

Tudo somado ainda era pouco. Fernando Henrique precisava de mais gente ao seu lado. Não tinha, no entanto, argumentos para convencer quem ele queria e com quem sonhava. Os primeiros dias foram gas­tos em entender o que se passava ali.

A última escolha para integrar a equipe foi a do economista Persio Arida, completando novamente a equipe do Cruzado. Daí em diante, a equipe responsável pela criação do Plano Real passou a se reunir assiduamente: Pedro Malan, Edmar Bacha, Persio Arida, Gustavo Franco, Winston Fritsch, André Lara Rezende e Clóvis Carvalho. Eduardo Jorge, assessor que o ministro tinha trazido do Senado, participava também, mas em geral ficava calado.

Começava o embrião do Plano Real, com a medida provisória nº434, de fevereiro de 1994, que instituía a U.R.V. (Unidade Real de Valor). Isso significava que estava criada uma criatura do sistema monetário que poderia ser usada nos contratos, como unidade de conta, mas não era emitida, não circulava, não pagava contas e nem impostos. Era moeda e não era, ao mesmo tempo, isto é, era um embrião de moeda. Como pela Constituição o país não pode ter duas moedas, a URV tinha apenas uma das funções de moeda, como unidade de conta, mas que não existia fisicamente.

No momento de seu aparecimento, a moeda virtual URV valia 647,50 cruzeiros reais. Todos os dias a cotação seria diferente e fixada pelo Banco Central. Ocorreria inflação em cruzeiro real, mas a URV teria que permanecer fixa. O salário mínimo era 64,79 URVs, o que equivalia a 42.829,00 cruzeiros reais. A indexação fixa significava que 1 URV = 1 dólar.

1 de julho de 1994 foi a data em que a nova moeda entrou em circulação, o Real que seria a oitava moeda brasileira no século XX. O dinheiro brasileiro já havia sido mil-réis; em 1942 virou cruzeiro; em 1965 cruzeiro novo e um dia esqueceram o adjetivo “novo”. Em 1986, o cruzeiro virou cruzado, depois cruzado novo, voltou a ser cruzeiro, virou cruzeiro real, e, naquele dia marcado, a URV viraria o real.

Em março de 1994, Fernando Henrique Cardoso deixou o governo para concorrer ao pleito presidencial. Assumiu Rubens Ricupero, que em 30 de junho do mesmo ano entregou ao presidente Itamar Franco a exposição de motivos para a implantação do Plano Real.

Até o 1 de julho, a casa da moeda já havia produzido 935,5 bilhões de cédulas em real, que significavam R$ 24,6 bilhões. As agências do Banco do Brasil receberam as remessas da nova moeda e o povo começava a trocar o velho cruzeiro real pelo novo dinheiro. Na troca, a velha moeda precisaria ser dividida pelo número 2.750 para se chegar ao valor da nova, pois o real de 1994 era igual a uma URV e, no dia em que entrou em circulação, valia 2.750 cruzeiros reais (exemplo: um quilo de carne colchão mole era 9.290 cruzeiros reais que convertidos passaram a 3,33 reais).

Cédula de 50.000 cruzeiros reais, que circulou entre out. de 1993 e set. de 1994. Na época em que foi trocada no Banco do Brasil pelo real significou R$ 18,18. Fonte: Banco Central.

Toda essa estabilização teve um preço e, para consegui-la, o governo passou a manter uma política cambial fixa pelo receio da volta da inflação. Para manter o câmbio fixo (paridade de 1 dólar = 1 real), o Banco Central comprou e vendeu dólares no mercado, usando suas reservas cambiais. Sobre tais reservas, o governo elevou a taxa SELIC**** para atrair capital externo especulativo e aumentar as reservas cambiais no Banco Central. O problema é que os juros altos do mercado inibem as atividades produtivas, reduzem o crescimento do PIB (crescimento médio foi baixo: 2,3% ao ano nos mandatos de FHC) e contribuem para o aumento da dívida interna (R$ 400 bilhões no final de 1999) e do desemprego (cerca de 10% da PEA entre 1994 e 2002).

****Criado em 1979, o Sistema Especial de Liquidação e Custódia é um índice no qual o mercado se baseia por suas taxas de juros e serve como referência da política monetária brasileira, isto é, reflete o custo do dinheiro para empréstimos bancários, com base na remuneração dos títulos públicos e que acaba definindo todas as taxas de juros na economia do país. Quem estabelece a política monetária e as metas da SELIC é o Conselho de Política Monetária – COPOM, que foi criado em 1996.

Mantendo o câmbio fixo e artificial com uma moeda forte, havia dificuldade de exportação e isso fazia com que a balança comercial fechasse em déficit (veja gráfico que segue).  As crises financeiras na Ásia (1997, Tigres – 1998, Rússia) contribuíram para que os investidores ficassem desconfiados e reduzissem o fluxo de dólares no Brasil (fuga em 1997/98 na ordem de US$ 40 bilhões). Houve uma maxidesvalorização do real em janeiro de 1999, que foi apelidada de ‘crise fiscal’. A partir daí o governo foi obrigado a tornar o câmbio flutuante. Isso, mesmo sendo involuntário, deu início ao aumento da produção industrial interna e das exportações, além de fazer a balança comercial fechar em superávit a partir de 2001, como mostrado no gráfico abaixo.

*A partir de 2007 a economia norte-americana entrou em uma crise que se tornou mundial em 2008, reduzindo as exportações brasileiras. Fonte: SENE, Eustáquio; MOREIRA, João Carlos. Geografia geral e do Brasil. São Paulo: Scipione, 2010, p. 474.

As estatísticas do IBGE registram o tamanho da saga brasileira: de 1980 a 1994, a inflação acumulada foi de 13.342.346.717.617,70%, em resumo, 13 trilhões e 342 bilhões por cento. De 1994 a 2009, a inflação acumulada foi de 196,87%. Na travessia, o Brasil mudou.

57 thoughts on “Inflação, Planos e Moedas: Saga Brasileira”

  1. Esse blog tá cada vez mais incrível! Polêmicas sempre acrescentam se os “egos” continuarem “ocultos” para a paz de todos. Beijos baianinho…

  2. Marcos, tudo bem? Gostaria de saber
    1 – pq o segundo governo FHC, e a primeira crise do real, foram ocultados? ou o livro terminou nesse momento lindo de FHC?
    2 – a bem da verdade gostaria de lembrar que o plano foi elaborado pelo antecessor de FHC, meu professor da UnB, Ricupero, Ciro Gomes e economistas da PUC-RJ. Pq foram descartados? Qualquer ser desse reino animal sabe disso !!!
    4 – da uma olhadinha na entrevista de Itamar Franco sobre o Plano.

    1. Marcos, tudo bem? Gostaria de saber
      1 – pq o segundo governo FHC, e a primeira crise do real, foram ocultados? ou o livro terminou nesse momento lindo de FHC?
      2 – a bem da verdade gostaria de lembrar que o plano foi implementado pelo sucessor de FHC, meu professor da UnB, Ricupero, Ciro Gomes e economistas da PUC-RJ. Pq foram descartados? Qualquer ser desse reino animal sabe disso !!!
      4 – da uma olhadinha na entrevista de Itamar Franco sobre o Plano.

      1. Rey, meu querido colega Reynaldo,
        Em homenagem a você, uma figura que prezo academicamente, fiz algumas inserções no texto que respondo abaixo.

        (1) Quanto à crise cambial de 1998/99, não foi citada originalmente, mas, em sua homenagem, já está incluída.
        (2) Fiz justiça aos nomes dos economistas da PUC-RJ – Ricupero também foi citado ao entregar a exposição dos motivos da MP434. Ciro foi apenas mais um ministro como qualquer outro seria.
        (4) Li sim a entrevista de Itamar, mas dei o desconto por já ser inimigo de FHC.

        Na verdade acho que o Luis Nassif tinha razão quando escreveu: “Esse grupo [dos economistas da PUC-RJ] esteve disponível para Sarney, Collor e ofereceria seus préstimos para o governante que solicitasse. Teriam montado o plano Real, fosse FHC, Rubens Ricúpero ou Ciro Gomes o Ministro da Fazenda […] O grande feito de FHC, de fato, foi administrar as excentricidades de Itamar, sua impaciência no pré-Real […] A grande habilidade dos economistas do Real foi terem montado a maior jogada cambial da história – que enriqueceu a todos eles e também banqueiros de investimento associados – sem ser pecebida por duas pessoas sérias, o próprio Ricúpero e Ciro Gomes.”

        Mas sendo apartidário, a verdade é que FHC organizou a equipe e mesmo sem entender direito o plano ficou com os méritos. Além do escrito ser pautado em uma síntese do livro de Leitão.
        Abraço

    2. Numa segunda etapa, já no ano de 1994, editou-se a Medida Provisória nº 434, de 28 de fevereiro, que criou a URV — ] Fernando Henrique deixa o cargo de Ministro da Fazendo em meados de março de 1994, para cumprir o prazo de desincompatibilização para disputar a Presidência. Em 30 de junho de 1994 o então Ministro da Fazenda de Itamar Franco Rubens Ricupero encaminhou ao presidente a Exposição de Motivos da MP do Plano Real E.M. Interministerial Nº 205/MF/SEPLAN/MJ/MTb/MPS/MS/SAF que disciplinou o Plano Real,[15]

  3. Professor, as datas no trecho a seguir estão corretas?
    “e só na década de 1980 é que os economistas do governo irão entender que a queda da inflação aumenta a capacidade de compra dos salários.

    Na década de 1960 foi incorporado no discurso autoritário dos militares o combate à inflação”
    Porque se estiverem corretas ficou um pouco confuso pra mim…

    1. Sim Henrique.
      Na verdade são duas coisas que não se dissociam (inflação e poder de compra dos salários), mas nesse contexto, os interesses eram diferentes. (1) A ditadura militar não se preocupava com esse poder de compra da população, e apenas com o crescimento do PIB (o discurso foi incorporado, mas não foi seguido, pois a inflação depois das crises do petróleo oscilava em torno de 30% ao ano). Para os militares, o combate à inflação era um discurso também para culpar a social-democracia (nesse caso juscelinista, pois no Jango houve estagnação industrial) de um crescimento econômico associado à alta de preços em que o poder de compra do povo era diminuído – só que a inflação ainda era encarada como processo de crescimento devido à crescente circulação de capital no mercado que crescia junto às indústrias. (2) Na década de 1980, o combate a inflação tornou-se a meta principal, pois não se tinha mais como sustentar um país com inflação que entrou a quase 1.000% ao ano e chegou a mais de 4.000% no final da década (fora o problema da crescente crise, desemprego…), e a dívida externa em 1982 era cerca de US$ 85 bilhões, e a inflação a fazia crescer mais (veja que no final da década de 1950 e início da de 1960 a média inflacionária era de 40% ao ano com grande crescimento industrial – e do emprego – e uma dívida externa em torno de US$ 3 bilhões).
      Espero ter sanado a dúvida.

  4. Parabéns, Marcos, pelo belo resumo desta saga que a Miriam escreveu sobre. Eu era jovem, tinha 13 anos quando o Real entrou em circulação, mas meu pai era bancário, e me explicou pacientemente a revolução que aquilo foi, o quanto foi importante para a redistribuição de renda do país. Lembro, no começo daquele ano, de estudar a inflação no colégio e de ela ser de 42% ao mês. Hoje levamos uma década pra chegar nisso. Num país de memória tão curta, textos como o seu são uma tábua de sensatez num rio de boçalidades. Parabéns.

    1. Obrigado Enderson,
      Quando li o livro da Miriam, além de relembrar muita coisa achei que deveria divulgar para que todos soubessem como o povo sofreu com tantos pacotes econômicos. Agora enxerguei outra finalidade do meu escrito: quem sabe as pessoas com a leitura do que você escreveu também relate o que se passou com elas… Tomara!

    1. Unidade Real de Valor – um fator de indexação fixo como se fosse uma moeda virtual (sem circulação) que servia como preparação para a nova moeda que circularia fisicamente no mercado.
      Depois da sua dúvida escrevi mais sobre o plano real (6 últimos parágrafos).
      Leia e qualquer coisa posta a dúvida.

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