O Brasil rodoviarista (e o desabastecimento)

Por Marcos Bau em 30/05/2018

Ontem uma pergunta discente sobre o momento de desabastecimento que o país está vivendo. Hoje outra. Respostas sucintas e mais dúvidas. Me pediram base para o porquê dos acontecimentos e tentei tornar inteligível o fenômeno. Deixei claro que era um prisma de visão meu (do mundo maravilhoso de Bau). Pediram para escrever sobre. Pontuei. Escrevi.

Em um dia qualquer da segunda metade da década de 1920, o político Washington Luís (mandato de 1926-1930) concluiu: “governar é construir estradas”. No contexto de um país completamente desarticulado territorialmente, onde quase 90% da população vivia na franja do litoral, ocupando uma faixa que chegava ao máximo de 200 km para o interior, a simplista frase fazia até sentido. Porém, já que o fordismo norte-americano estava em seus primórdios, o subdesenvolvimento do Brasil não conseguiria sua articulação junto à rapidez e facilidade de entendimento de tal frase presidencial, isto é, o entendimento frasal é fácil, mas o processo executor torna-se deveras extenso e complexo!

Olhe pae, até o fim do Império o Brasil possuía 9,5 mil km em ferrovias, que cresceram para 29 mil km até a república Velha (1889-1930). Atualmente o país tem 30,5 mil km em ferrovias e vocês não sabem o porquê de o país travar se os caminhões não rodarem em 100% da sua capacidade?! Então lá vai resposta em cidades… São Paulo possui 90 km de linhas de metrô; Nova Iorque, 370 km; Paris, 220 km; Tóquio, 330 km. Isso já diz algo, mas continuo a cronologia…

Washington foi apeado do poder pelo maior golpista que o Brasil já teve, Getúlio Vargas. Em tempo, até a década de 1980, uma boa parcela dos historiadores criticava bastante Getúlio, mas de lá para cá não mais, pois, apesar do despotismo, reconheceu a qualidade do estadismo keynesiano getulista em detrimento do desmonte feito nos anos 1990, através dos conselhos do Consenso de Washington, naquele liberalismo de uma via ou do “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”, ou num upgrade de atualização pela mais recente crise mundial, resultado da bolha explodida em 2008, quando os Estados tiveram que socorrer os mercados (pensam que o Estado lá no centro é fraco como eles querem o nosso periférico Estado aqui?! Não, não é.)

O Estado Novo getulista foi uma ditadura feroz, mas ninguém nega que o populismo tinha qualidade direcionada ao trabalhador e as bases do desenvolvimentismo automobilístico – que viria – foram fincadas em seus dois mandatos (1930-45 e principalmente 1950-54). O primeiro oscilou em um slogan popular da época, que foi um pouco deturpado com o conteúdo entre parêntesis: “pai dos pobres (e mãe dos ricos)” ! Todavia, o que viria nos governos que aprenderam com o populismo getulista seria muito mais o lado político de mãe dos ricos, contribuindo em muito para forjar – em décadas posteriores – uma classe média que passou a se sentir cada vez mais contemplada, por também se achar “rica” (pelo menos de possibilidades do tal “chegar lá” que nunca chega!).

Governar para a classe média ascendente, com pauta no capital externo teve um estágio inicial no governo Dutra. O capital externo não saiu mais de cena e assim a indústria automobilística teve estradas abertas em todos os sentidos. O lobby das montadoras sobre JK o pressionou desde a candidatura. Juscelino (1956-60) sabia que “seus” 50 anos em 5 de crescimento se daria através do tripé empresarial dos capitais estatal, privado e multinacional. Também sabia que o capital de fora seria o proporcionador do verdadeiro salto e Brasília construída o ápice da lógica rodoviarista. Oito montadoras se instalaram em São Paulo e a produção industrial tomou o que fôra o eixo do café em tempos de outrora. A articulação SP-RJ consolidou a região concentrada, estendendo-a em direção sul nas décadas posteriores. Enfim, o Brasil realizava o sonho de Washington Luís e seguia o sólido caminho das rodovias, como sinônimo do que se tornaria o plano a ser perpetuado.

Turbulência com a renúncia do contraditório Jânio em 1961. Goulart assume. Mais turbulência. Presidencialismo que virou parlamentarismo, que virou presidencialismo de novo. Estagnação industrial pela crise política. Plano de governo e comício na Central do Brasil. Reformas de Base não eram pauta que se pusesse à tona em um momento que a classe média estava ascendendo em seu consumo de bens duráveis e nunca admitira que a classe trabalhadora melhorasse de vida (se o pobre também ascende, quem irá nos servir!? Combateremos esse comunismo subversivo!). Conservadora como sempre, mas que também sempre se achou vanguarda, a classe média vai para a rua protestar na marcha com Deus pela liberdade, contra um governo que queria melhorar a condição do trabalhador mais necessitado e por esse pecado foi acusado de comunista. Os militares se aproveitaram do conceito de vanguarda que a classe média externou e sentaram à cadeira presidencial por 21 anos.

A ditadura militar (1964-1985) foi o paraíso para os grandes empreiteiros construtores de pontes, hidrelétricas, estradas e superfaturamento. Medidas Provisórias de hoje eram os Atos Institucionais permanentes do período das trevas. O capital externo jorrava na conservadora modernização, que não permitia avanços sociais, e a dívida indexada em dólares virou o esteio do crescimento econômico dos governos militares, que chegou a ser chamado de “milagre econômico”. “Milagre” para uns, tortura e morte aos subversivos que lutavam contra o regime. “Ordem e progresso”. A indústria automobilística foi a que mais cresceu nesse período de liberdades cerceadas pelo totalitarismo estatal. A classe média consolidou seu pensamento de se sentir mais “rica” ao adquirir o resultado da produção em série, que tinha o carro como principal símbolo de poder, enquanto o trabalhador pagava a conta com arrocho salarial e o sonho de um dia o bolo do crescimento do PIB ser repartido em serviços públicos de qualidade ou de um mínimo de ganho real em seu salário. Não foi. Nunca foi.

O último governo da ditadura militar foi marcado por greves, caos econômico, dívida externa impagável e inflação galopante. Corrupção também tinha muita, mas investigação não. O trabalhador continuou pagando a conta nos fatídicos planos econômicos da redemocratização a partir de 1985, quando o gatilho salarial nunca alcançava a hiperinflação. Aumento de diferença social e perda de poder de compra do assalariado. Classe média sofre, mas aprendeu a não perder a pose. O carro, bem material da grande minoria, dominou as ruas do país e o transporte público teve um desenvolvimento inversamente proporcional à qualidade do serviço. Metrô não acompanha a necessidade de quem realmente precisa. Ferrovias sucateadas e estagnadas em seu desenvolvimento. Proalcool sucumbiu e até hoje não teve a mesma força nos carros Flex. O verdadeiro negócio da mobilidade é mesmo o diesel e a gasolina.

Na década de 1990, um plano de estabilidade monetária minimizou a inflação, mas a desigualdade já era estratosférica. Agradeçamos principalmente aos militares pelo tamanho dela. Projetos sociais assistencialistas foram elastecidos nos anos 2000 e um deles, que passou a assistir 50 milhões de pessoas, só corroborou os dados do quanto a desigualdade era grande. O carro continuou como símbolo de poder, agora com cada vez mais marcas e modelos. A classe média – que continuava a se achar “rica” e não perdia a pose – sorriu em suaves prestações de 60 vezes com juros embutidos.

Uma classe menos que média, que havia ascendido à nomenclatura de média, consumiu como nunca, mas, como sempre, sem qualidade no consumo, boa parte não suportou a primeira crise e voltou para seu estágio de origem. As rodovias cresceram (mais!) e os trilhos foram tornados esquecidos no ideário da população. Chamam de evolução 70% da carga no Brasil ir de caminhão e 18% de trem. Chamam de evolução a malha rodoviária ter 1,7 milhão de km (desses, apenas 211 mil km estão asfaltados) e a ferroviária 30,5 mil km (quer comparar? Os EUA possuem 226 mil km em ferrovias e a França, que é 13 vezes menor que o Brasil, possui 1500 km de ferrovias a mais que o bananal). Nessa matéria, crescemos 1,5 mil km de ferrovias em 90 anos e não entendemos o porquê de o país ter se tornado o da lógica da política do contentamento com o menos pior (um ex: diesel e gasolina são melhores que tração animal). Um reset talvez o fizesse voltar no modo de segurança, mas é melhor não, por ter uma parcela que dormiu nas aulas de história e geografia e outra que não entende do que fala, por confundir o conceito de segurança social ao defender (outra) intervenção militar.

Contudo o Brasil segue, mas vive um fim que está sempre perto, mas que nunca chega. Vive um caos constante, que nunca é o suficiente, e por isso vem o questionamento de que se isso pode ser chamado de caos, por ser esse estágio o estado normal da maioria da população. Virá mais uma eleição. Há três décadas sempre veio, mas com a mesma estrutura. Promessas de mudança. Esperança. Para o trabalhador, mais deveres e desmonte de direitos. Nada muda para o socialmente mais fraco. Enfim, o limbo é muito pior que o caos, mas o que melhor se adequa. Bem-vindo ao Brasil de sempre. Acostume-se positivistamente. Se souber, reze. Continue tendo calma que tudo dará certo.

Só me sobrou o sarcasmo, mas a verdade é que o que eu queria mesmo era a alienação alheia e um carro a diesel para pagar combustível mais barato.