O Subcontinente Indiano

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A Inglaterra foi o país que mais regiões na Ásia e África colonizou. Podemos dizer que o neocolonialismo praticado pela Inglaterra, na maioria dos casos, foi “de enquadramento” (controle de fora  para dentro). Na Índia, percebemos a passagem de Protetorado para colônia de enraizamento.

De certa maneira, os primeiros passos da Inglaterra para a dominação sobre a Índia aconteceram graças ao chá. No início do século 17, em 1615, uma missão diplomática da Companhia Inglesa das Índias Orientais negociou um acordo que dava à empresa direitos exclusivos para estabelecer fábricas em várias cidades indianas. Em troca desse monopólio destinado ao comércio do chá, a Companhia traria ao país produtos do mercado europeu. Mas fez bem mais que isso. Abriu as brechas por onde a Índia iria deixar escapar sua autonomia política. Na altura dos anos 1850, os britânicos já controlavam quase todo o subcontinente indiano, inclusive o território correspondente aos atuais
Paquistão e Bangladesh (Fonte: Revista Aventuras na História, Editora Abril).

Na região a presença européia remonta ao século XVI com a chegada dos portugueses e seu domínio sobre algumas regiões. No século XVIII, holandeses, franceses e ingleses lutaram pela região e a dominação inglesa começou a definir-se em 1757, com a vitória de Robert Clive, representante da Companhia Inglesa das Índias Orientais, sobre os holandeses e, em 1763, sobre os franceses*, quando o Tratado de Paris assegurou a supremacia inglesa na região (veja mapa que segue com os territórios coloniais da Inglaterra na Índia).

*1756-1763 – Guerra dos Sete Anos – Sua origem está na rivalidade econômica e colonial franco-inglesa nos EUA e na Índia e na ocupação dos estados franceses da Terranova e Nova Escócia, no norte da América, por colonos britânicos instalados na costa nordeste. A Inglaterra é a vencedora do conflito na América e dominam ainda os territórios franceses nas Antilhas, na África e na Índia. O Tratado de Paris (1763) encerra a guerra e os franceses perdem toda a influência na Índia.

Mapa dos territórios coloniais britânicos. Fonte: MAGNOLI, Demétrio. Estudos de geografia. São Paulo: Atual, 2008, p. 172.

Em 1885 fundou-se o Partido do Congresso Nacional Indiano, que teria grande importância no processo de independência da Índia. Nesse período, “Mahatma” Gandhi estudava direito na Inglaterra. Trabalhou como advogado em Bombaim (Índia) e posteriormente em Durban na África do Sul por cerca de 3 anos, onde foi tratado como membro de raça inferior. Por esse motivo fundou uma seção do Partido do Congresso e definiu seus princípios políticos, lutando pelos direitos dos indianos através do satyagraha – resistência pacifica baseada nos princípios da luta sem violência e no sofrimento como instrumento para resistir ao adversário (“abraço da verdade” em sânscrito).

O Partido do Congresso reunia setores elitizados da sociedade indiana e representava em especial os Hindus. Esse fato alimentou constantemente uma contradição, na medida em que diversos setores da sociedade indiana não pertencem a essa religião*. Hinduísmo é um termo genérico usado para designar a religião dos hindus, é politeísta, pressupõe a divisão da sociedade em castas, rigidamente estratificada, onde as diferenças são reforçadas; dessa maneira, o Partido acabava por defender os direitos de liberdade da Índia frente ao domínio britânico, porém não garantia a grande parte da população, uma situação diferente daquela existente até então.

* Religião: 73,9% hinduísmo, 12,2% islamismo, 6,2% cristianismo (3,3% independentes, 3,8% outros – dupla filiação 0,9%), 3,8% crenças tradicionais, 2,2% sikhs, 1,3% outras, 1,5% sem religião e ateus – 1,1% dupla filiação.

Em 1906 foi criada a Liga Muçulmana que representava uma imensa minoria (aprox. 10% da população) e, ao mesmo tempo prenunciava a divisão da colônia em Estados religiosamente rivais.

Durante a Primeira Guerra (1914-1918) os hindus e os muçulmanos permaneceram apoiando a Coroa britânica, acreditando em uma independência posterior que não veio devido à promulgação, em 1919, da lei Rowlatt Act, que prorroga indefinidamente medidas de emergência para punir severamente manifestações anticoloniais.

Na década de 1920, Gandhi – que havia chegado do exterior em 1915 – tornou-se o principal expoente do Partido e da luta contra a dominação inglesa. Entre 1922 e 1924 foi preso por defender a não-violência e a não-cooperação com os ingleses. Em 1929 o Partido do Congresso proclamou a independência completa como meta única e em março de 1930, Gandhi em nova campanha contra a Inglaterra liderou o “protesto do sal”, que teve como resultado a prisão de mais de sessenta mil pessoas. Nesse período já se sentia a divisão interna no partido do Congresso entre hindus e muçulmanos.

Mapa da Marcha do Sal ou Satyagraha do Sal ato de protesto contra a proibição, imposta pelos britânicos da extração de sal na India Colonial. Quase 400km, de 12 de março a 6 de abril de 1930.

A direção do Partido do Congresso estava sob o comando de Jawaharlal Nehru com Gandhi como inspirador. Os dois defendiam uma Índia independente, por cima da separação religiosa, mas a Liga Muçulmana comandada por Mohammed Ali Jina desejava um Estado  muçulmano independente, a mesma ideia de Londres.

Ao final da Segunda Guerra Mundial foram se desenvolvendo negociações entre os representantes do Partido do Congresso e o governo inglês. Ao mesmo tempo ampliavam-se os conflitos internos entre hindus e muçulmanos e os massacres de ambos os lados se tornaram comuns. Sob a oposição ferrenha de Gandhi e apoio de Nehru que não acompanhou o pacifista, na impossibilidade de manter a unidade política, mas percebendo a chance de preservar seus interesses econômicos na Índia, desde que evitado um conflito interno de grandes proporções, os ingleses, em julho de 1947, propuseram a divisão da região em dois países: Índia com capital em Nova Delhi de maioria hindu e Paquistão (ocidental e oriental), com capital em Karachi com áreas geográficas de maioria muçulmana. Tal divisão tinha o apoio tanto de hindus como de muçulmanos e fora traçada em Londres arbritariamente. Gandhi morreria seis meses após a partilha da Índia, assassinado por um radical hindu em janeiro de 1948 (veja indicação de filme abaixo).

Filme britânico e indiano de 1982, ganhador de 8 oscars e que mostra o grande marco de lutas pela liberdade indiana  pela propagação da política de não-violência liderada por Mahatma Gandhi.

A criação do Estado muçulmano do Paquistão gerou identidades nacionais erguidas sobre alicerces religiosos e o Congresso Nacional Indiano (CNI) concebeu um Estado Laico e democrático (maiores eleições livres do mundo) separando a esfera pública política e a esfera privada da religião.

Com a divisão dos estados, milhões de pessoas foram forçadas a deixar suas casas e cidades e a vivenciar um longo período de migração, de um país para outro, num processo onde os saques e ataques às populações minoritárias foram uma constante. A exemplo de cerca de 9 milhões de refugiados hindus deslocaram-se do Paquistão para a Índia, entre eles algo como 5 milhões de sikhs, a comunidade religiosa hindu do Punjab (no mapa, da área amarela para a vermelha). No sentido oposto, aproximadamente 6 milhões de refugiados muçulmanos deslocaram-se da Índia para o Paquistão.

Conforme a divisão, o Punjab ficou repartido entre a Índia e o Paquistão Ocidental conforme mostrado no mapa. Bengala foi dividida entre o Paquistão Oriental e a Índia também mostrado no mapa.

Indostão e territórios. Montagem: Marcos Brandão.

Neste contexto é que encontramos o problema que envolve a Caxemira (vide mapa anterior), região ao norte da Índia, que faz fronteira com o Paquistão, região na qual os líderes políticos aderiram à Índia, porém, onde a maioria da população de 10 milhões de habitantes é muçulmana. A região tem 220 mil Km2, se encontra atravessada pelas cadeias montanhosas do  Hindu-Kush e Himalaia (altitude média de 5 mil metros, mostrado no mapa físico posteriormente) que são divididas pelo vale do rio Indo. Tal região é vista como ponto estratégico desde a Guerra Fria, pois faz fronteira com o Tadjisquistão, então parte da União Soviética. A opinião dos habitantes da Caxemira em 1995 era de larga maioria favorável à independência.

Mapas físico e político do Sul da Ásia. No mapa físico as altitudes passam pelas cores verde (nível do mar), amarela (até 1000m), marrom (mais claro até 2000m até o mais escuro entre 4 e 7 mil metros) e roxa (mais de 7000m). Fonte: Atlas Geográfico Saraiva, 2007, p. 82, 83. Clique na imagem para uma melhor visualização.

Acompanhe a divisão da Caxemira associando ao mapa que segue:

  • Caxemira Indiana: estado de Jamu/Caxemira com 100 mil Km2 e 6,5 milhões de habitantes, o único com maioria demográfica muçulmana;
  • Caxemira Paquistanesa composta pela área de Azad ou “Caxemira Livre” mais os territórios do Norte: 78 mil Km2 e 3,5 milhões de habitantes com maioria de muçulmanos xiitas;
  • Caxemira Chinesa: conquistada na guerra sino-indiana (1962) com 40 mil Km2 e alguns milhares de habitantes que corresponde à área do Aksai Chin, que está ligada à região autônoma do Tibete.

Mapa delimitando as “três Caxemiras” citadas anteriormente.

A primeira guerra indo-paquistanesa na Caxemira data de 1947, quando uma tribo paquistanesa invade o território  da Caxemira governado pelo marajá hindu que é a favor da independência, mas opta pela adesão à Índia. O detalhe é que o território caxemiro é de maioria muçulmana com comando hindu e o conflito de 1947 só cessou quando o Conselho de Segurança da ONU em abril de 1948 exigiu a retirada das forças paquistanesas da região e determinou a realização de um plebiscito que nunca existiu.

Em 1962 a Índia foi derrotada pela China e perdeu parte do território da Caxemira, acentuando as divergências com o Paquistão, que mantinha relações amistosas com a China. A tentativa paquistanesa de apoiar um levante interno na Caxemira somente terminou com outra mediação da ONU, em 1965. Seis anos depois, a Índia apoiou o movimento de independência de Bengala, província paquistanesa, que adotou o nome de República de Bangladesh, após a derrota do Paquistão (territórios citados mostrados no mapa anterior).

As disputas nas quais a Índia se envolveu, internas e externas, serviram de justificativa para o desenvolvimento tecnológico bélico e, em 1974, o país realizou seu primeiro teste nuclear (veja alcance dos mísseis em mapa no final doesse artigo).

Importante ressaltar que o maior interesse da Índia sempre foi a liderança do Indostão. Durante o Governo de Nehru (1947-1964) expressou seu neutralismo ao participar do movimento dos Não-Alinhados e mesmo durante a Guerra Fria (1947-1991), não integrou o movimento dos países pró-ocidentais na orla asiática e firmou tratados de cooperação econômica e tecnológica com Moscou. Em resumo, o entendimento das ações como neutralidade abarcavam tanto o apoio aos Não-Alinhados quanto ao socialismo como aliança com Moscou.

A década de 80 foi marcada pelo crescimento do fundamentalismo muçulmano, fortalecendo o movimento separatista da Caxemira, tanto por parte de grupos que surgiram na região, como de outros que se desenvolveram no Paquistão. Dessa maneira formaram-se grupos guerrilheiros que passaram a lutar pela independência, e que receberam apoio externo.

O encerramento da Guerra Fria e a implosão da União Soviética aprofundaram drasticamente a percepção de insegurança da Índia, pois a tensão geopolítica vivida com a China era amenizada pelos laços com a URSS. Nos anos 90  houve a aceleração do programa nuclear indiano (também por causa da China já ter bomba nuclear) e os conflitos se intensificaram, envolvendo os guerrilheiros muçulmanos, incluindo homens de diversas nacionalidades que se deslocaram para combater na região, e o exército indiano, também fortalecido pelo fundamentalismo hindu, refletindo uma situação de conflitos étnicos e religiosos generalizada, responsável inclusive pelo assassinato de Rajiv Gandhi, (Primeiro-Ministro entre 1984/89, filho de Indira Gandhi, neto de Nehru e líder do Partido do Congresso Indiano – CNI) durante campanha eleitoral em 1991, por extremistas tâmil (povos do sul da Índia, Sri Lanka, Mianmar – Ex-Birmânia, Indonésia, Malásia, Vietnã e Cingapura e povos do sul e leste da África).

Em 1992/93, eclodiram sangrentos confrontos entre hindus e muçulmanos no vale do Ganges (vide mapa) e na Índia Ocidental que enraizaram o Bharatiya Janata Party (BJP – Partido nacionalista Hindu) entre as populações do Norte da Índia. O Partido do Congresso Nacional Indiano (CNI) que dividia essa hegemonia política com o BJP é atingido por escândalos de corrupção e perde campo para o partido nacionalista hindu (BJP) nos grandes centros urbanos. Em 1998 o BJP obtém maioria parlamentar e lidera o governo até 2003, quando o CNI vence as eleições e volta ao poder. Atualmente a política indiana organiza-se entre alianças desses dois partidos.

Linha azul mais forte demonstrando o traçado do Rio Ganges que contorna o norte da Índia em uma distância entre 250 a 300km da fronteira com o Nepal adentrando no território de Bangladesh antes de desaguar no Golfo de Bengala.

As tensões internas caracterizadas por movimentos separatistas fizeram com que o país vivesse um processo constante de militarização, agravando a situação de miséria da população. Em meio às tensões, a Índia, devido à vulnerabilidade ao ataque nuclear chinês, passa a criticar o Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP).

A decisão estratégica da Índia era tentar convencer (dissuadir) cada vez menos a China e assegurar a modernização e o caráter operacional do seu pequeno arsenal nuclear. Isso vai instigar o Paquistão a fazer seus testes logo após as explosões indianas. O Paquistão desde a década de 1980 já tinha condição de desenvolver tecnologia nuclear, mas, sentindo-se provocado, realizou testes em 1998 (veja alcance nuclear no mapa abaixo).

Alcance dos mísseis nucleares do Paquistão (de roxo, 1500km) e da Índia (cerca vermelha a 250km das fronteiras). Fonte: Curso Objetivo.

Em 1999 após invasão paquistanesa, a Índia respondeu com artilharia pesada e forçou a retirada do Paquistão. Atualmente a Índia controla dois terços da região e acusa o Paquistão de treinar e armar os separatistas.

Em 2004, Índia e Paquistão instauram um processo de paz que melhora as relações bilaterais, mas a disputa pela Caxemira continua sem solução. Em 2008, são abertas rotas para o comércio entre as duas partes da Caxemira, após 61 anos de interrupção.

Em 2009, o governo da Índia propõe a retomada das conversações aos grupos separatistas da Caxemira indiana, que só aceitam reiniciar o diálogo se houver retirada de tropas da região, libertação de prisioneiros e o fim da violação de seus direitos. O governo ensaia em outubro do mesmo ano uma retirada de parte das tropas para um esforço de aproximação.

Texto adaptado de http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=551 ; MAGNOLI, Demétrio. O Mundo contemporâneo. 2.ed. São Paulo: Atual, 2008, cap. 9 e 17 e Almanaque Abril 2010, p. 494-496.

24 thoughts on “O Subcontinente Indiano”

    1. Muito obrigado Ester! Já escrevi um livro teórico resultado da minha dissertação de mestrado, mas quem sabe um dia parta para um livro didático…
      Fico feliz em ajudar no entendimento de vocês. Volta sempre que precisar!

  1. Ai professor, teu site ta perfeito, entendi tudo, coisa que nao da pra fazer muito bem na porra daquele livro de geopolitica que a gente tem!! valeu ai pela ajuda

  2. Professor, o texto ficou ótimo!

    Obrigado pela sua dedicação com a nossa árdua tarefa de compreender o Demétrio Magnoli 😀

    P.s: Esta combinado então: Ao invés de pagar um chop, te darei uma camisa do Metallica 😉

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