Geografia: Pequena História Crítica

Este escrito é um resumo da obra de MORAES, Antonio Carlos Robert. Geografia: pequena história crítica. 20.ed. São Paulo: Ananblume, 2000.

Por Marcos Bau Brandão.


Os Primórdios da Geografia

Mapa mundi de Ptolomeu.

A Geografia remonta à Antiguidade Clássica, principalmente ao pensamento grego, mas em perspectivas distintas que privilegiavam a discussão sobre a medição espacial do formato da Terra como estudada por Tales e Anaximandro, a descrição dos lugares em uma perspectiva regional como fez Heródoto, a relação homem e meio presente em Hipócrates e até elementos geográficos na obra do filósofo Aristóteles que aborda a concepção de lugar sem a ligação do homem com o meio natural. Mesmo nas obras de Claudio Ptolomeu e Bernardo Varenius que citam a grafia geografia nos seus títulos, observa-se que a maior parte dos temas tratados pouco ou nada tem em comum com o que posteriormente será considerado Geografia.

Importante ressaltar que para o geógrafo Ruy Moreira (O que é Geografia, 2009), Estrabão (64 a.C. – 24 a.C.) foi o criador da Geografia. Este geógrafo e historiador da antiguidade clássica dizia que “a geografia familiariza-nos com os ocupantes da terra e dos oceanos, com a vegetação, os frutos e peculiaridades dos vários quadrantes da Terra; e o homem que a cultiva é um homem profundamente interessado no grande problema da vida e da felicidade”.

A condição reflexiva para um desenvolvimento geográfico mais profundo começa a se realizar com as “grandes navegações”, e as consequentes descobertas efetuadas pelos europeus a partir do século XVI. A constituição de um espaço mundial, que tem por centro difusor a Europa, é elemento destacado do processo de transição do Feudalismo para o Capitalismo. A formação desse modo de produção exige a articulação de suas relações a uma escala planetária, o que faz expandir a área de ação das sociedades europeias a todo globo terrestre. A análise sobre informações de variados lugares da Terra também se configura como o início de uma base empírica de informações mais sistemáticas e observações mais científicas para o desenvolvimento da ciência geográfica. A Geografia da primeira metade do século XIX foi, fundamentalmente, a elaboração desse material.

O que se considerava, até essa referida época, como Geografia eram relatos de viagem, descrição sobre lugares e seus fenômenos naturais, catálogos sobre continentes e países do globo, etc. Portanto, pode-se afirmar que o conhecimento geográfico se encontrava disperso até o final do século XVIII, pois o conhecimento da dimensão e da forma real dos continentes era a base para a ideia de conjunto terrestre, concepção basilar para a reflexão geográfica. Período este que seria considerado uma pré-história da Geografia como versou Nélson Werneck Sodré.

Uma primeira valorização do temário geográfico está no século XVIII, através das correntes filosóficas que vão propor explicações mais abrangentes do mundo. Os autores que se dedicaram à Filosofia do Conhecimento, como Kant ou Leibniz, enfatizaram a questão do espaço. No caso de Kant, sem articular esta discussão (ao nível da “razão pura”) com aquela por ele efetuada com o rótulo explícito de Geografia (da “razão prática”). Outros filósofos, que discutiram a Filosofia da História, como Hegel ou Herder, destacaram a questão da influência do meio sobre a evolução das sociedades. Herder levanta uma ideia, que será acatada com entusiasmo pelos geógrafos, a de ver a Terra como “teatro da humanidade”. Enfim, estas formulações trouxeram uma valorização do temário da Geografia e a fé na razão humana, imposta pela filosofia, abria a possibilidade de uma explicação racional para qualquer fenômeno da realidade. As bases da ciência moderna já estavam assentadas.

Trabalhos de Economia Política também atuaram na valorização de temas geográficos pela via da produtividade natural do solo, dotação diferenciada dos lugares, em termos de recursos minerais, do problema da distância e do aumento populacional que posteriormente tornar-se-ão temário clássico da Geografia. O Evolucionismo de Darwin e Lamarck dará o pleno reconhecimento da autoridade do temário geográfico, uma base sólida para indagações dos primeiros geógrafos responsáveis pela metodologia naturalista.

Por outro lado, a sistematização geográfica, em si mesma, ocorria já num momento de pleno domínio das relações capitalistas, em que a burguesia já se sedimentara no controle dos estados. Deste modo, a efetivação da Geografia como um corpo de conhecimentos sistematizados ocorria já no período de decadência ideológica do pensamento burguês, em que a prática dessa classe, então dominante, visava a manutenção da ordem social existente. Este é um dado fundamental para se compreender o que foi a Geografia.

Alexander Von Humboldt e Karl Ritter

Os autores considerados pais da Geografia, aqueles que estabelecem uma linha de continuidade nesta disciplina, são alemães ligados à aristocracia – Alexander Von Humboldt (1769-1859) e Karl Ritter (1779-1859). O primeiro conselheiro do rei da Prússia e o segundo, tutor de uma família de banqueiros. Na verdade, todo o eixo principal da elaboração, no século XIX, estará sediada neste país. É da Alemanha que aparecem os primeiros institutos e as primeiras cátedras dedicadas a esta disciplina; é de lá que vêm as primeiras teorias e as primeiras propostas metodológicas; enfim, é lá que se formam as primeiras correntes deste pensamento.

Karl Ritter (1779-1859)

Humboldt era naturalista (geólogo e botânico) e realizou inúmeras viagens. Entendia a Geografia como a parte terrestre da ciência do cosmos, isto é, como uma espécie de síntese de todos os conhecimentos relativos à Terra. Portanto, caberia ao geógrafo “reconhecer a unidade da imensa variedade dos fenômenos, descobrir pelo livre exercício do pensamento e combinando as observações, a constância dos fenômenos em meio às suas variações aparentes”. A observação da paisagem causaria no observador uma “impressão”, a qual, combinada com a observação sistemática dos seus elementos componentes, e filtrada pelo raciocínio lógico, levaria à explicação: a causalidade das conexões contidas na paisagem observada.

Ritter (filósofo e historiador) tem na Geografia um cunho metodológico de propor uma geografia que deveria estudar os arranjos individuais (cada arranjo como um conjunto de elementos, representando uma totalidade, onde o homem seria o principal elemento). A Geografia de Ritter é, principalmente, um estudo dos lugares, uma busca da individualidade destes. Para Ritter, a ordem natural obedeceria a um fim previsto por Deus, a causalidade da natureza obedeceria à designação divina do movimento dos fenômenos em uma proposta antropocêntrica (o homem como sujeito da natureza).

A obra desses dois autores compõe a base da Geografia Tradicional. A Geografia de Ritter é regional e antropocêntrica, a de Humboldt busca abarcar todo o globo sem privilegiar o homem – os pontos coincidentes vão aparecer, para os geógrafos posteriores, como fundamentos inquestionáveis de uma geografia unitária.

 Friedrich Ratzel

Um revigoramento do processo de sistematização da Geografia vai ocorrer com as formulações de Friedrich Ratzel, também alemão e prussiano, publica suas obras no último quartel do século XIX. Enquanto Humboldt e Ritter vivenciaram o aparecimento do ideal de unificação alemã, Ratzel vivencia a constituição real do Estado nacional alemão e suas primeiras décadas A Geografia de Ratzel foi um instrumento poderoso de legitimação dos desígnios expansionistas do Estado alemão recém-constituído. O historiador Lucien Febvre chegou a denominá-la de “manual do imperialismo”.

Friedrich Ratzel (1844-1904)

As relações capitalistas penetraram tardiamente na Alemanha e conviveram numa conciliação com a estrutura herdada do feudalismo. A Confederação Germânica foi o primeiro passo no sentido da unificação. Mesmo assim, em meados do século passado, o poder ainda se encontrava disperso pelas várias unidades confederadas. Era fruto de dominações locais, sem a existência de um governo central. A Prússia e a Áustria disputavam a hegemonia dentro da Confederação. O segundo passo, no sentido da unificação, foi forjado na repressão aos levantes populares de 1848 (Primavera dos Povos).

Mapa da Confederação Germânica (1815-1866) que foi uma associação política e econômica de territórios que falavam a língua alemã, criada no Congresso de Viena, sob a liderança da Áustria. As maiores potências eram o Império Austríaco (de amarelo) e o Reino da Prússia (de azul). O limite da Confederação não abarca todo o território da Áustria e da Prússia e está marcado com a linha vermelha. Foi dissolvida depois da Áustria perder a guerra Austro-prussiana em 1866. Fonte do mapa: Wikimédia Commons.

A direção do Estado prussiano estava nas mãos da aristocracia junker, os proprietários de terras, os mais claros representantes da velha ordem feudal. Uma grande repressão social interna e uma agressiva política exterior completam o quadro da Prússia em 1871, ano de constituição do império alemão que se assentava numa política exterior agressiva e expansionista, um projeto imperial de anexação constante de novos territórios.

Ratzel vai ser um representante típico do intelectual engajado no projeto estatal; sua obra propõe uma legitimação do estado bismarckiano. Assim, a Geografia de Ratzel expressa diretamente um elogio ao imperialismo, como ao dizer, por exemplo, “semelhante à luta pela vida, cuja finalidade básica é obter espaço, as lutas dos povos são quase sempre pelo mesmo objetivo. Na história moderna a recompensa da vitória foi sempre um proveito territorial”.

Pode-se afirmar que a principal obra de Ratzel (Antropogeografia – fundamentos da aplicação da geografia à história, 1882) funda a Geografia Humana ao definir o objeto geográfico como o estudo da influência que as condições naturais exercem sobre a humanidade. A natureza influenciaria a própria constituição social, pela riqueza que propicia, através dos recursos do meio em que está localizada a sociedade. A natureza também atuaria na possibilidade de expansão de um povo, ostaculizando-a ou acelerando-a, pois o progresso significaria um maior uso dos recursos do meio, logo, uma relação mais íntima com a natureza. Para Ratzel, a sociedade é um organismo que mantém relações duráveis com o solo, manifestas, por exemplo, nas necessidades de moradia e alimentação e quando essa sociedade se organiza para defender o território, transforma-se em Estado.

A perda de território seria a maior prova de decadência de uma sociedade. Por outro lado, o progresso implicaria a necessidade de aumentar o território, logo, de conquistar novas áreas. Justificando estas colocações, Ratzel elabora o conceito de “espaço vital”. Essa ligação da sociedade com o território se expressa na justificativa do expansionismo como algo natural e inevitável numa sociedade que progride, gerando uma teoria que legitima o imperialismo bismarckiano.

Em termos de método, a obra de Ratzel não realizou grande avanços. Manteve a ideia da Geografia como ciência empírica, cujos procedimentos de análise seriam a observação e a descrição, além da síntese das influências em escala planetária vendo o lugar como objeto em si, e como elemento de uma cadeia. De resto, Ratzel manteve a visão naturalista: reduziu o homem a um animal, ao não diferenciar as suas qualidades específicas.

Os discípulos de Ratzel radicalizaram suas colocações, constituindo o que se denomina “escola determinista” de Geografia, ou a doutrina do “determinismo geográfico” de orientação de estudos pautados em máximas como: “as condições naturais determinam a História” ou “o homem é um produto do meio” – empobrecendo bastante as formulações de Ratzel, que falava de influências.

Outro desdobramento da proposta de Ratzel manifestou-se na constituição da Geopolítica quando este autor abordou a ação do Estado sobre o espaço. Geopolíticos como Kjellen (criador do termo geopolítica), Mackinder e Haushofen foram os autores mais conhecidos dessa corrente. A última perspectiva ratzeliana está dentro da chamada escola “ambientalista” que propõe estudo do homem em relação aos elementos do meio em que ele se insere, entretanto, é mais ao determinismo que ao ambientalismo que o nome de Ratzel acabou identificado.

Vidal de La Blache

A outra grande escola da Geografia que se opõe às colocações de Ratzel, vai ser eminentemente francesa e tem seu principal formulador em Paul Vidal de La Blache.

Paul Vidal de La Blache (1845-1918)

A França foi o país que realizou, de forma mais pura, uma revolução burguesa. Ali os resquícios feudais foram totalmente varridos, a burguesia instalou seu governo, dando ao Estado a feição que mais atendia a seus interesses. A classe burguesa comandou uma transformação radical na ordem existente, implantando o domínio total das relações capitalistas. Napoleão Bonaparte completou este processo de desenvolvimento do capitalismo na França, o qual teve seu ponto de ruptura na Revolução Francesa (1789), que varreu do quadro agrário deste país todos os elementos herdados do feudalismo.

Com a consolidação do domínio burguês, tal característica de massa da política vai produzir um acirramento da luta de classes. A jornada de 1848 (Primavera dos Povos) e da Comuna de Paris (1871), e suas sangrentas repressões, atestaram o cair da máscara da dominação burguesa, refletindo o fim da fase heróica desta classe. Os ideais e as propostas liberais e progressistas, forjadas na fase revolucionária, caem por terra, frente aos imperativos autoritários demandados pela manutenção do status quo.

Na segunda metade do século XIX, a França e a Alemanha, no caso ainda a Prússia, disputaram a hegemonia no controle continental da Europa. Havia, entre estes dois países, um choque de interesses nacionais, uma disputa entre imperialismos. Tal situação culminou com a guerra franco-prussiana, em 1870, na qual a Prússia saiu vencedora. A França perde os territórios de Alsácia e Lorena, vitais para sua industrialização, pois neles se localizavam suas principais reservas de carvão. No contexto da guerra, caiu o Segundo Império de Luís Bonaparte, ergueu-se como beneplácito prussiano, a Terceira república francesa. Foi nesse período que a Geografia se desenvolveu.

Como foi visto, a Geografia de Ratzel legitimava a ação imperialista do Estado bismarckiano. Era mister, para a França, combatê-la. O pensamento geográfico francês nasceu com esta tarefa. Ambos (Ratzel e La Blache) veicularam, através do discurso científico, o interesse das classes dominantes de seus respectivos países. A proposta de Ratzel exprimia o autoritarismo, que permeava a sociedade alemã: o agente social privilegiado, em sua análise era o Estado, tal como na realidade que esse autor vivenciava. A proposta de Vidal manifestava um tom mais liberal, consoante com a Revolução Francesa, e sua análise partiu do homem abstrato do liberalismo.

Vidal criticou a minimização do elemento humano, que aparecia como passivo nas teorias de Ratzel. Entretanto, apesar de aumentar a carga humana do estudo geográfico, este autor não rompeu totalmente com uma visão naturalista, pois diz explicitamente: “a Geografia é uma ciência dos lugares, não dos homens”. Portanto, definiu o objeto da Geografia como a relação homem-natureza, na perspectiva da paisagem. Colocou o homem como um ser ativo, que sofre a influência do meio, porém que atua sobre este, transformando-o. Observou que as necessidades humanas são condicionadas pela natureza, e que o homem busca as soluções para satisfazê-las nos materiais e nas condições oferecidas pelo meio. A natureza passou a ser vista como possibilidades para a ação humana: daí o nome de Possibilismo dado a esta corrente pelo historiador Lucien Febvre.

A teoria de Vidal concebia o homem como hóspede da superfície terrestre adaptado ao meio que o envolvia, ao criar um acervo de técnicas, hábitos, usos e costumes que lhe permitiram utilizar os recursos naturais disponíveis. A este conjunto de técnicas e costumes, construído e passado socialmente, Vidal denominou “gênero de vida”, o qual exprimiria uma relação entre a população e os recursos, uma situação de equilíbrio, construída historicamente pelas sociedades. A diversidade dos meios explicaria a diversidade dos gêneros de vida. O contato com outros gêneros de vida foi destacado por Vidal como um fator de mudança. Para ele, na verdade, este seria o elemento fundamental do progresso humano.

À Geografia caberia estudar os gêneros de vida, os motivos de sua manutenção ou transformação, e sua difusão, com a formação dos domínios de civilização. Tudo isso tendo em vista as obras humanas sobre o espaço, isto é, as formas visíveis, criadas pelas sociedades, na sua relação histórica e cumulativa com os diferentes meios naturais.

Em termos de método, a proposta de Vidal de La Blache não rompeu com as formulações de Ratzel, foi antes um prosseguimento destas. O fundamento positivista aproxima os dois autores.

La Blache vinculou todos os estudos geográficos à Geografia Humana, mas discute as relações homem-natureza, não abordando as relações entre os homens. Seu discípulos escreveram durante a primeira metade do século XX sobre uma determinada porçao do planeta explicitando o conceito de região que balizaria a Geografia francesa posterior. Dessa forma, a Geografia seria prioritariamente um trabalho de identificação das regiões do globo. A região foi sendo compreendida como um processo histórico, que expressaria a relação dos homens com a natureza.

Um dos seguidores mais ilustres de La Blache foi Max Sorre (publicou suas obras na década de 1940) que desenvolveu o conceito de habitat como uma construção humana, uma humanização do meio, que expressa as múltiplas relações entre o homem e o ambiente que o envolve. Para Sorre, a análise geográfica deveria abarcar este processo de humanização do meio, as condições reinantes e as relações, com elas, que os habitantes mantêm.

Richard Hartshorne

Renomado geógrafo americano retoma a discussão de Hetner que propunha a Geografia como a ciência que estuda “a diferenciação de áreas”, isto é, a que visa explicar “por quê” e “em que” diferem as porções da superfície terrestre. A Geografia seria então o estudo dessas formas de inter-relação dos elementos, no espaço terrestre.

Richard Hartshorne (1899-1992)

Para Hartshorne, uma área possuiria múltiplos processos integrados, sendo uma forma inesgotável de inter-relações (a necessidade de seleção dos elementos a serem analisados, que deveriam ser os mais significativos). Este autor criou os conceitos de Geografia Idiográfica que seria uma análise singular (de um só lugar) e unitária (tentando apreender vários elementos), que levaria a um conhecimento bastante profundo de determinado local e Geografia Nomotética que deveria ser generalizadora, apesar de parcial. No estudo nomotético, o pesquisador pararia na primeira integração e reproduzi-la-ia (tomando os mesmos fenômenos e fazendo as mesmas inter-relações) em outros lugares. Desta forma Hartshorne articulou a Geografia Geral e a Regional, diferenciando-as pelo nível de profundidade de suas colocações. A Geografia Nomotética possibilitou a agilização do estudo regional.

Por Uma Geografia Nova (Geografia Pragmática e Geografia Crítica)

A crise na Geografia Tradicional e o movimento de renovação a ela associado começam a se manifestar já em meados da década de 1950 e se desenvolvem aceleradamente nos anos posteriores. A década de 1960 encontra as incertezas e os questionamentos difundidos por vários pontos. A partir da década de 1970, a Geografia Tradicional está definitivamente enterrada. Os geógrafos vão abrir-se para novas discussões e buscar caminhos metodológicos até então não trilhados. Esta crise é benéfica, pois introduz um pensamento crítico, frente ao passado dessa disciplina e seus horizontes futuros. Introduz a possibilidade do novo, de uma Geografia mais generosa.

O desenvolvimento do modo de produção capitalista havia superado seu estágio concorrencial, entrando na era monopolista. Vivia-se a época dos grande trustes, do monopólio e do grande capital (também da transição do fordismo para a acumulação flexível). Propunha-se agora a ação do Estado na ordenação e regulação da vida econômica. O planejamento econômico estava estabelecido como uma arma de intervenção do Estado. O espaço terrestre se globalizara nos fluxos e nas relações econômicas. O instrumental elaborado para explicar comunidades locais não conseguia apreender o espaço da economia mundializada.

O mosaico da Geografia Renovada é bastante diversificado abrangendo um leque muito amplo de concepções. Entretanto, é possível agrupá-las, em função de seus propósitos e de seus posicionamentos políticos, em dois grandes conjuntos: um pode ser denominado Geografia Pragmática, outro Geografia Crítica.

A Geografia Pragmática vai se substantivar por algumas propostas diferenciadas. Uma primeira via de sua objetivação é a Geografia Quantitativa, onde as relações e inter-relações de fenômenos de elementos, as variações locais da paisagem, a ação da natureza sobre os homens, etc. seriam passíveis de ser expressas em termos numéricos (pela medição de suas manifestações) e compreendidas na forma de cálculos. Para eles, os avanços da estatística e da computação propiciam uma explicação geográfica. Outra via da objetivação da Geografia Pragmática vem da teoria dos sistemas, quando na pesquisa, o investigador deve preencher os itens do modelo assumido com os dados da realidade enfocada, assim como introduzir variáveis próprias no lugar estudado. A articulação entre esses dados constantes e variáveis fornecerá, por uma elaboração no computador os resultados em termos de padrões e tendências.

A Geografia Quantitativa permite a elaboração de “diagnósticos” sobre um determinado espaço, apresentando uma descrição numérica exaustiva sobre as suas características, e ainda a tendência de evolução dos fenômenos ali existentes. Seus autores empobrecem a Geografia, ao conceber as múltiplas relações entre os elementos da paisagem como relações matemáticas, meramente quantitativas. No Brasil essa Geografia ficou conhecida como Teorética.

A denominação de Geografia Crítica advém de uma postura crítica radical, frente à Geografia existente (seja a Tradicional ou a Pragmática), a qual será levada ao nível de ruptura com o pensamento anterior. Porém, o designativo de crítica diz respeito, principalmente, a uma postura frente à realidade, frente à ordem constituída. São autores que se posicionam por uma transformação da realidade social, pensando o seu saber como uma arma desse processo. São os que pensam a análise geográfica como um instrumento de libertação do homem. Ao nível acadêmico, criticam o empirismo exacerbado da Geografia Tradicional, que manteve suas análises presas ao mundo das aparências, e todas as outras decorrências da fundamentação positivista (a busca de um objeto autonomizado, a ideia absoluta de lei, a não-diferenciação das qualidades distintas dos fenômenos humanos etc.).

O autor que formulou a crítica mais radical da Geografia Tradicional foi, sem dúvida, Yves Lacoste, em seu livro A Geografia serve, antes de mais nada, para fazer a guerra. Lacoste argumenta que o saber geográfico manifesta-se em dois planos: a “Geografia dos Estados-Maiores” e a “Geografia dos Professores”. Para ele, a primeira sempre existiu ligada à própria prática do poder. Todo conquistador (Alexandre, César ou Napoleão) sempre teve um projeto com relação ao espaço, também os Estados e, mais modernamente, a direção das grandes empresas monopolistas. A “Geografia dos Professores” seria a que foi denominada de Tradicional e serve para levantar, de uma forma camuflada, dados para a “Geografia dos Estados-Maiores.

Yves Lacoste (1929)

O livro de Lacoste alerta que o cidadão comum tem uma visão fracionada do espaço, pois só concebe os lugares abarcados por sua vivência cotidiana, e só exporadicamente possui informações (e mesmo assim truncadas) da realidade de outros lugares. Duas pessoas podem viver na mesma cidade, concebendo-a de forma diferente, em função de seus interesses e de sua área de ação. Por outro lado, o Estado tem uma visão integrada e articulada do espaço, pois age sobre todos os lugares, e isto se transforma numa arma a mais de dominação. Assim, argumenta Lacoste, é necessário construir uma visão integrada do espaço, numa perspectiva popular, e socializar este saber, pois ele possui fundamental valor estratégico nos embates políticos. Diz explicitamente: “é necessário saber pensar o espaço, para saber nele se organizar, para saber nele combater”.

O propósito expresso por Lacoste define, de forma clara, os objetivos e a postura da Geografia Crítica. Esta assume inteiramente um conteúdo político explícito, que aparece de forma cabal na sua afirmação, “a Geografia é uma prática social em relação à superfície terrestre”, ou na de David Harvey, “a questão do espaço não pode ser uma resposta filosófica para problemas filosóficos, mas uma resposta calcada na prática social”; aparece ainda, na afirmação de Milton Santos, “o espaço é a morada do homem, mas pode ser também sua prisão”.

A primeira manifestação clara foi a partir de um livro denominado Geografia Ativa que opunha-se à Geografia Aplicada. A proposta da Geografia Ativa propunha colocar a descoberto as contradições do modo de produção capitalista, nos vários quadros regionais. Ensejava assim uma Geografia de denúncia de realidades espaciais injustas e contraditórias. Tratava-se de explicar as regiões mostrando não apenas suas formas e sua funcionalidade, mas também as contradições sociais aí contidas: a miséria, a subnutrição, as favelas, enfim as condições de vida de uma parcela da população, que não aparecia nas análises tradicionais de inspiração ecológica. Daí a ideia do espaço como base da vida social, e sua organização como reflexo da atividade econômica.

O autor que mais se destacou dentro desse movimento foi, sem dúvida alguma, Pierre George. Seu grande mérito foi introduzir pioneiramente alguns conceitos marxistas na discussão geográfica. Este autor vai tentar uma conciliação da metodologia da análise regional como o instrumental conceitual do Materialismo Histórico de ver as formas espaciais enquanto processos sociais, no sentido de que os processos sociais são espaciais.

Milton Santos (1926-2001)

Diante disso, Milton Santos argumenta que é necessário discutir o espaço social, e ver a produção do espaço como objeto. Este espaço social ou humano é histórico, obra do trabalho, morada do homem. Ainda segundo Santos, as diferenças dos lugares são naturais e históricas, e que a variação da organização do espaço é fruto de “uma acumulação desigual de tempo”.


3 thoughts on “Geografia: Pequena História Crítica”

  1. Grande Bau! Lembrei-me das aulas de Bases Epistemológicas da Geografia, a diferença é que agora, com clareza, eu entendi muita coisa! (muito diferente de 7 anos atrás quando estava no banco da faculdade) Sempre bom poder debater e aprender com camaradas como você! Excelente texto, animou-me para mais 6 aulas que virão hoje!
    Forte abraço!

  2. Excelente Bau! Mais uma contribuição para todos nós. Você é mais um daqueles baianos que fazem jus aos grandes nomes que de lá vieram.

  3. Professor Marcos Bau, a Geografia que nos encanta tem como “objeto de estudo” a relação entre o homem, a sociedade e a natureza. Partindo desta simploria consideração, entendemos esta mesma Geografia como conhecimento estratégico (e viva Yves Lacoste) e de transformação do espaço a partir das sociedades que atuaram e atuam nele ao longo do tempo (e viva Milton Santos – mais um baiano bom). Parabéns pelas considerações sobre o clássico “Geografia: Pequena História Crítica” – um abre alas para o olhar geografico da minha formação. Debatamos meu grande colega de trabalho.

Deixe uma resposta para Ricardo Chaves Cancelar resposta