Por Marcos Bau
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Parte do que compõe a Ucrânia como país, principalmente a península da Crimeia (tomada novamente pela Rússia em 2014), foi conquistada pelo Império Russo no século XVIII, em uma guerra contra o Império Otomano ou Império Turco (séc. XIII ao XVII), que envolvia terras do norte da África, sudeste da Europa e Oriente Médio (vide terceiro mapa que segue). O território ucraniano, no século XIX, se dividiu entre o Império Austro-Húngaro e o Império Russo. A maior parte do território reunia a região centro-oriental do atual território ucraniano e pertencia ao Império Russo.
Delineamento em vermelho dos limites do Império Austro-Húngaro, que foi desmembrado pelo Tratado de Versalhes, em 1919. Surgiram os países indicados e a parte do território ucraniano envolvido pelo contorno em vermelho é a região da Galícia (atual oeste da Ucrânia e que também perfaz o sul da Polônia). Fonte do mapa: Art Nouveau
Após a Revolução Bolchevique, em 1917, territórios da parte noroeste da Ucrânia declararam independência e a parte sudeste ficou incorporada à República Socialista Soviética. O ideário do líder soviético bolchevique Vladimir Lênin, em instaurar regimes socialistas em toda a Europa, se inicia com uma guerra contra a Polônia, com duração entre fevereiro de 1919 e março de 1921.
Mapa de países surgidos no pós I Guerra pelo Tratado de Versalhes, da Finlândia à Albânia. O território ucraniano envolvia terras da Polônia e sua maior parte em terras da URSS. Fonte do mapa: ARRUDA, José Jobson de A. PILETTI, Nelson. Toda a história. São Paulo: Ática, 2007, p. 469.
O ideário leninista contribuía para uma atmosfera de guerra. No conflito russo-polonês (1919-1921), a Ucrânia lutou ao lado da Polônia contra a Rússia, sob a premissa do reconhecimento por parte da Polônia de terras na fronteira com a Ucrânia, uma região intitulada Galícia*. O território da Galícia (oeste da Ucrânia e sul da Polônia) já tinha sido objeto de guerra entre a Ucrânia e a Polônia, em 1918, e pelo citado reconhecimento da fronteira, a Ucrânia assinou uma aliança com a Polônia, na qual, os poloneses deram auxílio militar ao exército ucraniano em outro conflito, dessa vez na guerra russo-ucraniana, quando as tropas do Exército Vermelho invadiram Kiev em 1920.
*A Galícia viraria território incorporado à Ucrânia no pós Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Ao fim da guerra, os poloneses conseguiram a recuperação de territórios perdidos no início da guerra, além de também adquirir a independência, mas não conseguiram expulsar os bolcheviques do território ucraniano. Com isso, a Ucrânia virou uma República Socialista Soviética. Na década de 1930, Stalin impôs a coletivização de terras, causando milhões de mortos de fome no episódio que ficou conhecido como genocídio ucraniano.
Durante a Segunda Guerra (1939-1945), a Ucrânia foi ocupada pelos nazistas alemães, que mantiveram as fazendas coletivas e tocaram o programa de extermínio dos judeus. A população ucraniana, que não estava contente com as atrocidades anteriores de Stalin, também se opôs aos nazistas durante a ocupação alemã na Segunda Guerra. Mesmo assim, em 1944, Stalin deportou mais de 300 mil tártaros da península da Crimeia para a Sibéria e a Ásia Central, sob o pretexto de que eles fossem colaboracionistas dos nazistas chefiados por Hitler. Hoje, a população da Crimeia possui cerca de 15% de tártaros que voltaram anos depois da deposição forçada.
O pós Segunda Guerra faz crescer o território ucraniano a oeste, já que a URSS anexa o Leste Europeu na Conferência de Yalta e a Ucrânia fazia parte dos territórios anexados que compunham a apelidada “Cortina de Ferro”. Em 1954, Nikita Krushev presenteia a península da Crimeia ao governo ucraniano como comemoração do 30º aniversário da união entre URSS e Ucrânia.
Fonte: Wikimedia Commons.
Com o colapso do socialismo soviético, a Ucrânia torna-se independente e a Criméia uma república autônoma da Ucrânia. Contudo, em 2014, a Rússia de Vladimir Putin invadiu a península, anexando-a novamente ao território russo e fazendo com que a Ucrânia reivindicasse o direito de exercer a soberania sobre a península. Em tempo, as relações entre Rússia e Ucrânia continuam tensas nessa segunda década do século XXI, devido ao separatismo defendido pela população mais a leste do território ucraniano (vide mapa que segue), pois é uma população de ascendência consanguínea do Império Russo. Em 24 fev. 2022, Putin ordenou um ataque ao território ucraniano a fim de tornar as terras do leste do país território russo.
Da Revolução Laranja aos dias de hoje
Essa da foto é a primeira ministra da Ucrânia, Yulia Timochenko, em sua primeira aparição, em fevereiro de 2014, depois de ter saído da prisão, discursado na Praça da Independência e anunciado sua intenção em concorrer às eleições de maio de 2014. Yulia estava presa há 2,5 anos, sob a alegação de abuso de poder pelo governo de Viktor Yanukovych, um presidente pró-Rússia e ex-governador da província separatista de Donetsk*, que acabou sendo deposto em fevereiro de 2014 pelos protestos iniciados em novembro de 2013. Yanukovych se refugiou em Moscou.
*Em fevereiro de 2022, o Kremlin reconheceu a independência das áreas controladas por separatistas em Donetsk e Luhansk, no leste da Ucrânia, e, acima de tudo, ao enviar tropas russas para esses territórios, a Rússia colocou uma pedra sobre quase 8 anos da existência de ambas em uma zona cinzenta: formalmente parte da Ucrânia mas, na prática, sob o domínio de Moscou (Poder 360).
Praça da Independência em fevereiro de 2014, depois dos protestos que causaram mais de 100 mortos. Mais fotos em Business Insider
Yanukovych foi o pivô da fraude nas eleições de 2004, que resultou na chamada Revolução Laranja e deu a vitória ao candidato opositor Yushchenko. Da Revolução Laranja até 2010, Yulia Timochenko foi primeira-ministra até ser presa pelo presidente eleito Viktor Yanukovych, que tinha concorrido com a própria Yulia ao pleito de 2010, mas, quando venceu as eleições, logo a prendeu.
Yushchenko, o opositor que governou no pós Revolução Laranja, sucumbiu após acusações de corrupção e de direcionar o governo para a Rússia, a principal causa dos protestos atuais.
Voltando à 2014, Turtchinov, que foi designado pelo Parlamento como presidente interino era o braço direito de Yulia e pró União Europeia.
Mais mapas em The New York Times
E quem é mesmo Yulia Timochenko? A maior líder opositora do governo deposto e aliada do governo interino, ex-diretora de uma companhia de gás que, nos anos 1990, fez fortuna sob acusações e escândalos de corrupção quando foi presidente do orçamento parlamentar e, por fim, desafeto de alguns manifestantes mais curiosos e que sabem do seu passado.
A Ucrânia possui 45 milhões de habitantes e cerca de 78% dessa população é de ucranianos étnicos, 17% de russos e os 5% restantes de localidades do entorno europeu. Na península da Criméia, 60% da população de 2 milhões de habitantes são de origem russa. A Ucrânia possui o solo mais fértil do mundo (tchernozion) e o país é grande exportador agrícola. A energia é baseada na produção nuclear e na importação do petróleo de do gás da Rússia. Os dutos de petróleo e gás da Rússia atravessam todo o território ucraniano, para abastecimento dos países que estão situados mais a oeste no continente europeu.
Todos esses ingredientes causaram a maior tensão geopolítica desde a Guerra Fria. Parte da população é pró União Europeia e parte da população é pró Rússia, principalmente na Criméia e nas províncias de Donetsk e Lugansk, como mostrou o mapa anterior. Difícil é saber até que ponto os lados estão dispostos a ceder ou a ir em frente pelo povo ucraniano.
A Ucrânia decidiu em 2019 entregar as rédeas do país a Volodímir Zelenski, um cômico sem nenhuma experiência política e com um vago programa político para o país. Com uma campanha centrada na luta contra a corrupção, um fardo que pesa sobre o país, e contra o sistema, Zelenski, de 41 anos, arrebatou a presidência do veterano Petro Poroshenko.
A Ucrânia possui o segundo maior exército da Europa, só perdendo para a própria Rússia e as tensões são eminentes, pois o movimento separatista ucraniano tem apoio do governo de Vladimir Putin. Em fevereiro de 2022, o presidente norte-americano Joe Biden aconselhou que os americanos se retirem da Ucrânia, por causa dos movimentos militares junto à fronteira e ameaças de invasão das tropas russas. Em 24 de fevereiro de 2022, o presidente russo Vladimir Putin ordenou bombardeios e invasão à Ucrânia.
A possibilidade da aproximação da Ucrânia com a União Europeia e com a OTAN é um dos principais pontos destacados pelo presidente da Rússia, Vladimir Putin, como motivação para a invasão do território ucraniano. Desde novembro de 2021, Putin ameaçava militarmente uma invasão, caso a OTAN não se comprometesse a vetar a entrada da Ucrânia na organização, pois uma aliança militar da Ucrânia com a OTAN, para o presidente russo, seria uma ameaça contra o Kremlin. O veto não ocorreu.
Putin agiu na covardia, mas de outro lado é um estrategista e calculou bastante a invasão, por, além da instabilidade do caso interno dos grupos neonazistas de extrema direita ucranianos serem pró-Europa e da Ucrânia na OTAN, soma-se à força geopolítica maior da não concordância da influência dos EUA e da Europa Ocidental sobre o território ucraniano, país que os russos consideram quintal de influência deles, já que o governo de Kiev, na Guerra Fria, era da esfera de influência de Moscou, ou seja, contexto da época da URSS (a Ucrânia era a segunda economia da antiga URSS). Putin vê que a influência ocidental pode pressionar a Rússia, já que os EUA e a Europa ocidental podem posicionar soldados e armas nucleares na fronteira (a pressão sobre a Rússia é grande, pois praticamente todos os países do antigo leste europeu, que faziam parte do Pacto de Varsóvia, atualmente fazem parte da OTAN – vide mapa que segue). Em tempo, a Ucrânia é um país muito rico em recursos minerais e possui grande produção agrícola, pois é detentor do solo mais fértil da Europa, além de nele passar a rota dos gasodutos que atendem países europeus ocidentais. Todavia, além do interesse nas riquezas internas da Ucrânia, a invasão russa também tem o interesse de acesso aos portos desse país, já que os portos russos ficam com águas congeladas na maior parte do ano, prejudicando sua economia exportadora (vide a invasão da Crimeia, em 2014, pelo porto de Sebastopol). Portanto, a ideia de Putin é destituir o presidente ucraniano pró-ocidente e botar em seu lugar um presidente fantoche pró-Rússia.
Ainda que algumas das lideranças da Europa Ocidental possam ter genuínas preocupações com o crescimento da extrema direita, principalmente dentro de casa, isso não se reflete na sua política externa. A explicação mais comum para os especialistas é que eles não gostam do governo russo, mas gostam do seu gás barato e da sua oferta de vacinas. Para conseguir os dois, utilizam de todos os artifícios possíveis para combater o soft power russo e isolá-los geopoliticamente, inclusive fazendo vista grossa e até apoiando organizações e governos abertamente neonazistas para os seus fins (adaptado do Brasil de Fato).
O presidente da Rússia, Vladmir Putin, não começou uma guerra com a Ucrânia despreparado. Muito pelo contrário. As reservas internacionais da Rússia estão estimadas em cerca de 700 bilhões de dólares. Boa parte, cerca de 20%, está em ouro e é uma das maiores do mundo. As reservas estão ainda em euro, dólares e ienes. A dívida interna da Rússia equivale a 18% do PIB, segundo a consultoria Markestrat. Na prática, isso significa que as sanções bancárias contra o país não têm efeito significativo já que ela não depende de capital externo. Além disso, quanto mais subir o petróleo, mais a Rússia se beneficia, já que é grande produtora. Outra grande vantagem russa é o apoio da China, que já se posicionou contra sanções ao país. Se o mundo impuser sanções comerciais de qualquer tipo, mas a China continuar comprando, o país terá capacidade financeira para segurar uma guerra por um bom tempo, na avaliação de especialistas (Veja).
Graaande Bau! Sempre muito esclarecedor passar por aqui! Saudades!