O Estado Islâmico e a Reconfiguração do Oriente Médio

Artigo escrito por Marcos Bau, de forma bem didática, após ter lido, se inspirado e retirado trechos da obra de NAPOLEONI, Loretta. 2.ed. A fênix islamista: o Estado Islâmico e a reconfiguração do Oriente Médio. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015.

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Alguns meios de mídia e políticos no mundo relutam em usar a palavra “estado” quando se referem ao Estado Islâmico, pelo receio da população mundial entender a referida organização terrorista como um Estado legitimado por uma guerra de conquista e de aprovação dos próprios conquistados. A verdade é que eles se autodefinem como Estado Islâmico – EI e depois que li ‘A fênix islamista’, da correspondente de jornais como o El País e doutora em terrorismo, Loretta Napoleoni, fui compelido a escrever esse artigo baseado no livro e a concordar que a expressão EI transmite ao mundo uma mensagem muito mais realista que os acrônicos Estado Islâmico do Iraque e Síria ISIS (EIIS) ou Estado Islâmico do Iraque e Levante ISIL (EIIL), pois como eles se organizam existe uma composição de território, língua e leis demarcadas pelo seu califa exatamente como um Estado moderno se compõe, apenas carece de reconhecimento internacional, o que na atual conjuntura geopolítica planetária não se configura possível e nem minimamente viável.

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Capa do livro de Napoleoni.

Conforme Napoleoni, com dinheiro, porém sem reconhecimento político, os Territórios Ocupados não podiam ser considerados um Estado na verdadeira acepção do termo, mas apenas um Estado-fantasma, um que, embora tivesse uma infraestrutura nacional, carecia de autodeterminação que constitui a essência da condição de nação soberana […] No modelo de Estado-fantasma estabelecido pela Organização para a Libertação da Palestina – OLP e adotado agora pelo Estado Islâmico, a constituição da economia e da infraestrutura precedem a conquista do reconhecimento político, porém, cabe ressaltar que um Estado-fantasma pode ser pequenino como um subúrbio qualquer ou grande como um verdadeiro Estado e a legitimidade imediata que eles buscam é pelo consenso e aprovação da população localizada nos territórios conquistados.

A Origem do Estado Islâmico

Os primórdios do EI remontam a um jovem beduíno chamado Abu Musab al-Zarqawi, um jovem problemático e criminoso de pequena monta, nascido em 1966, que abraçou o salafismo radical (doutrina que professa a rejeição total dos valores ocidentais), quando esteve na prisão na década de 1990. Ainda hoje o salafismo é o credo adotado pelo EI.

Em 2000, al-Zarqawi foi convidado por Osama bin Laden para ingressar na Al-Qaeda, mas ousadamente recusou, pois já tinha em mente que sua luta não era contra o inimigo distante, os EUA, e sim o inimigo próximo ou o governo jordaniano, para montar um Estado verdadeiramente islâmico na região.

Os primeiros atentados suicidas a bomba no Iraque aconteceram em 2003, quando al-Zarqawi entrou no conflito. Ele havia sinalizado que o conflito tinha duas frentes: uma contra as forças de coalizão e outra contra os xiitas, porém, no ato dos primeiros atentados, o mundo ocidental ainda não havia feito a ligação entre os atentados contra os xiitas e a tentativa ideológica de formação de um califado liderado por Zarqawi. Em 2004, bin Laden reconheceu al-Zarqawi como chefe da Al-Qaeda no Iraque. Na mesma época, os jordanianos lideravam um grupo jihadista chamado Tawid al-Jihad, que teve o nome mudado para Estado Islâmico do Iraque (EII ou ISI), mas bin Laden era contra a estratégia do EI em provocar uma cisão entre sunitas e xiitas, por não acreditar que um movimento nacionalista unificado dessa forma pudesse se sair como vitorioso, inclusive marginalizando os jihadistas. O tempo, em seu ciclo curto, mostraria que bin Laden estava errado depois do fortalecimento do EI como aconteceu e acontece.

A morte de al-Zarqawi, em um ataque aéreo americano acontecido em 2006, enfraqueceu a organização até a entrada de Abu Bakr al-Baghdadi, que se tornou líder do que havia sobrado da Al-Qaeda no Iraque. Em 2010, al-Baghdadi saiu em busca de patrocinadores… Os kuaitianos, os catarianos e os sauditas se ofereceram para financiá-lo e, com isso, acabaram proporcionando indiretamente ao futuro EI acesso a equipamento militar do Ocidente.

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Abu Bakr al-Baghdadi

Ao perceber a impopularidade da Al-Qaeda, al-Baghdadi começou a se distanciar e buscou projetar na mente do povo traços mais familiares e nacionalistas. Continuou a atacar alvos xiitas, mas viu no conflito sírio, decorrente dos desdobramentos da Primavera Árabe, uma oportunidade para remodelar e fortalecer sua organização. Mandou jihadistas para território sírio e usou uma estratégia de conquista de porta em porta. No Iraque usou a mesma estratégia de seu antecessor, ou seja, uma conquista, aos poucos, do cinturão periférico de cidades no entorno de Bagdá isolando a capital encarada como um grande centro. Assim impôs um novo Estado nessas regiões conquistadas da borda territorial.

A fusão do Estado Islâmico do Iraque – EII com a Frente al-Nustra, considerada por muitos uma espécie de franquia da Al-Qaeda na Síria, deu origem a outra organização chamada Estado Islâmico do Iraque e Levante – EIIL (logo tornado Estado Islâmico do Iraque e Síria – ISIS e rebatizado como Estado Islâmico – EI), que se mostrava em um campo de lutas ao lado dos rebeldes, mas claramente queria a derrubada do governo de Assad para criar seu próprio domínio territorial.

A fusão de do grupo de Baghdadi com a al-Nustra deixou os dirigentes da Al-Qaeda furiosos, ordenando que Baghdadi voltasse para o Iraque afirmando que os comandantes da al-Nustra eram os verdadeiros representantes da Al-Qaeda na Síria. Baghdadi não obedeceu à ordem de seus antigos mentores e ao mesmo tempo desafiou a Al-Qaeda demonstrando que nos territórios conquistados pela sua liderança, nem xiitas nem seguidores de nenhuma outra crença teriam vez nesse futuro Estado, a menos que abraçassem o salafismo.

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Em junho de 2014, o Estado Islâmico anunciou a criação de um califado com Abu Bakr al-Baghdadi, doutor em filosofia de estudos islâmicos pela Universidade Islâmica de Bagdá, como califa apesar da contestação do mundo muçulmano ao acrescentar que o título de califa “só pode ser dado a toda a nação muçulmana”, e não a um único grupo. Os líderes repetem que: “a Al-Qaeda é uma organização e o EI é um Estado” em um projeto de longo prazo de destruir a Casa Real de Saud e recriar o Oriente Médio.

Embora esteja empenhado num expurgo religioso, o Califado exerce também uma função missionária proselitista sobre os povos e oferece a qualquer um a oportunidade de se converter ao salafismo sunita e, assim, tornar-se seu cidadão. Os que recusam e não conseguem fugir são executados.

A Espacialidade e a Territorialidade Organizacional

Hoje, o domínio territorial do EI é maior que todo o Reino Unido ou o Estado do Texas e a organização se estabeleceu em regiões financeiramente estratégicas, a exemplo dos ricos campos de petróleo no Leste da Síria. Só para dar um exemplo, no auge de sua militância, a Organização para a Libertação da Palestina – OLP, maior organização armada do Oriente Médio, controlava apenas uma fração das terras que o Estado Islâmico governa hoje. Quanto à fortuna que detém, ainda falta um longo caminho, pois a do EI é estimada em 2 bilhões de dólares enquanto a OLP chegou a recursos financeiros que oscilavam entre 8 e 14 bilhões de dólares na década de 1990.

O EI se aproveitou da confusão geopolítica que envolve a região e entendeu que uma intervenção na Síria como aconteceu no pós Primavera Árabe na Líbia ou na Guerra ao Terror imposta por Bush no Iraque não seria possível. Em um mundo multipolar de alianças instáveis, o combate ao EI entre a Síria e no Iraque é feito em um contexto contemporâneo de guerra por procuração, mantida por muitos patrocinadores de conflitos e grupos armados, e é por isso que o EI conseguiu estabelecer seu Califado numa vasta região fervilhante de conflitos religiosos onde existe certa territorialidade de várias nações financiadoras de guerras. Por conta dessa confusão geopolítica regional, o EI enfrenta vários inimigos em terra: os exércitos sírio e iraquiano, a Frente Islâmica, uma coalizão de grupos jihadistas, os rebeldes sírios e até milícias xiitas e as forças curdas Peshmerga (curdos armados).

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Fonte: ZH Notícias.

Além do radicalismo religioso e dos atos terroristas existe uma organização político-militar empenhada na criação de um Estado nacional, que envolve a aprovação consensual e a colaboração das populações remanescentes dos territórios conquistados. Moradores das terras controladas pelo Califado afirmam que a chegada do EI coincide com melhorias na administração e no funcionamento diário de seus povoados, ou seja, buracos tapados nas estradas, cozinhas comunitárias gratuitas para os que perderam seus lares e energia elétrica durante todo o dia para os povos conquistados. Isso significa que o EI entendeu que não é possível criar Estados somente com atos terroristas e violência. Para tanto, os programas sociais são o outro lado da moeda da feroz ditadura religioso-sectarista do EI, mas que projetou na mente dos cidadãos sírios a imagem de um poder mais honesto e justo do que o governo ditatorial e sanguinário de Assad, em um Estado que busca a legitimidade por meio do consenso e aprovação da população local.

Pela primeira vez na história moderna, uma organização armada terá alcançado o objetivo final do terrorismo: criar seu próprio Estado nacional com as cinzas de nações consolidadas, e não por meio de uma revolução, tal como aconteceu no Irã, mas com uma guerra de conquista tradicional com base em táticas terroristas.

Para o mundo, o EI propaga a propaganda do medo, que tem sido muito hábil no uso de redes sociais para divulgar vídeos e imagens com suas ações bárbaras. O medo é uma arma de conquista muito mais poderosa do que as pregações religiosas, algo que a Al-Qaeda não conseguiu entender. Alguns dos seus integrantes foram treinados e especializados e analisaram as máquinas de propaganda que os governos dos Estados Unidos e do Reino Unido usaram para justificar o ataque preventivo contra o Iraque em 2003. O EI usa nas redes sociais a criação de mitos igualmente falsos para fazer proselitismo, recrutamento e levantamento de recursos financeiros no mundo islâmico (o EI sempre passou a ideia de uma força muito mais poderosa que realmente é pelo poder das redes sociais e de associação de produções midiáticas aos acontecimentos mundiais e de um exército cada vez mais forte e bem-sucedido interna e externamente). A conclusão até o momento é que, desde o ataque de 11 de setembro de 2001, o negócio do terrorismo islâmico tem se fortalecido, em vez de enfraquecer. Estima-se que somente a exploração de petróleo gere 2 milhões de dólares por dia para o EI e que seus combatentes são em número de 20 a 30 mil, sendo que destes, acredita-se que mais de 10 mil sejam estrangeiros.

Nessa configuração de guerras por procuração por causa dos distintos interesses entre seus patrocinadores, remonta a um quebra-cabeça em que na Síria, o Irã tem apoiado o regima de Bashar al-Assad, principalmente por intermédio de seu aliado Líbano, o grupo Hezbollah, enquanto os sauditas, os kuaitianos e os catarianos vêm financiando uma ampla gama de grupos insurgentes sunitas, entre os quais, outrora, o EIIL, para minar o poder iraniano na região. O Hezbollah, por sua vez, vem armando e financiando o Hamas no conflito palestino, embora o Hamas seja constituído predominantemente por sunitas e, historicamente, tem sido financiado pela Arábia Saudita. Para piorar a situação, a Rússia anda fornecendo armas ao governo de Assad, ao passo que Washington está armando rebeldes sírios que combatem o regime de Assad com armas que, talvez por ironia do destino, o EI confisca a cada vitória.

O paradoxo dentro desse complexo conflito é que Barack Obama, em 2014, ordenou ataques aéreos em combate ao EI para ajudar os Peshmergas (curdos armados) e os europeus concordaram em armar os curdos para o combate ao EI. O detalhe é que tanto os norte-americanos como os europeus põem os curdos na lista de terroristas a serem combatidos. Enquanto isso, o líder do EI, al-Baghdadi, se aproveita dessas contradições, nas quais são somadas a elas o fato de que combatentes sírios se sentem atraídos pelo EIIL por o achar um grupo mais organizado e sendo assim mudam de facção para outra com frequência. Nesse ambiente a sociedade deixou de existir e foi substituída por guerras perenes de ações medievais, onde a Convenção de Genebra foi completamente rasgada.

A lealdade ideológica dos combatentes do EI é certificada pelo salário pago ser menor que o salário de um operário comum sírio ou iraquiano. Os 41 dólares mensais ganhos pelos soldados do EI estão longe dos 150 dólares dos operários iraquianos.

Os atentados do 11 de Setembro foram um murro na cara dos ocidentais, ao passo que o estabelecimento do Califado foi um nocaute aplicado em seus principais aliados do Oriente Médio, um golpe que ameaça a própria existência deles como ordem geopolítica originalmente concebida para beneficiar o Ocidente e suas elites oligárquicas aliadas.

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