Condição Pós-Moderna, Parte Dois

Este escrito é um resumo dos capítulos 7 (introdução), 8 (o fordismo) e 9 (do fordismo à acumulação flexível) que compõem a parte dois do livro de HARVEY, David. Condição Pós-moderna. 22.ed. São Paulo: Edições Loyola, 2012.

Por Marcos Bau Brandão

condiçao pos moderna

No Ocidente, ainda vivemos uma sociedade em que a produção em função de lucros permanece como o princípio organizador básico da vida econômica […] O longo período de expansão pós-guerra, que se estendeu de 1945 a 1973, teve como base um conjunto de práticas de controle do trabalho, tecnologias, hábitos de consumo e configurações de poder político-econômico, e de que esse conjunto pode com razão ser chamado de fordista-keynesiano. O colapso desse sistema a partir de 1973 iniciou um período de rápida mudança, de fluidez e de incerteza […] Os contrastes entre as práticas político-econômicas da atualidade e as do período de expensão do pós-guerra são suficientemente significativos para tornar a hipótese de uma passagem do fordismo para o que poderia ser chamado regime de acumulação “flexível” (p. 117, 119).

A data inicial do fordismo deve por certo ser 1914, quando Henry Ford introduziu seu dia de oito horas e cinco dólares como recompensa para os trabalhadores da linha automática de montagem de carros que ele estabelecera no ano anterior em Dearbon, Michigan, isto é, em parte era obrigar o trabalhador a adquirir a disciplina necessária à operação do sistema de linha de montagem de alta produtividade.

Ford fez pouco mais que racionalizar velhas tecnologias e uma detalhada divisão do trabalho preexistente, embora, ao fazer o trabalho chegar ao trabalhador numa posição fixa, ele tenha conseguido dramáticos ganhos de produtividade. Os princípios da Administração Científica, de F. W. Taylor – um influente tratado que descrevia como a produtividade do trabalhador podia ser radicalmente aumentada através da decomposição de cada processo de trabalho em movimentos componentes e da organização de tarefas de trabalho fragmentadas segundo padrões rigorosos de tempo e estudo do movimento –, tinham sido publicados, em 1911 […] Ford usara quase exclusivamente a mão de obra imigrante no seu sistema de produção, mas os imigrantres aprenderam e os trabalhadores americanos eram hostis (por isso, a rotatividade da força de trabalho mostrou-se impressionantemente alta).

O que havia de especial em Ford (e que, em última análise, distingue o fordismo do taylorismo) era a sua visão, seu reconhecimento explícito de que produção de massa significava consumo de massa […] Gramsci em seus Cadernos do Cárcere definiu o americanismo e o fordismo como o “maior esforço coletivo até para criar, com velocidade sem precedentes, e com uma consciência de propósito sem igual na história, um novo tipo de trabalhador e um novo tipo de homem” (p. 121).

A estase democrática dos anos 1920 (embora vinculada a classe) tinha que ser superada, muitos concordavem, por um pouco de autoritarismo e intervencionismo estatais (o problema é que não haviam precedentes, salvo o caso da industrialização no Japão e as intervenções bonapartistas na França do Segundo Império). É nesse contexto confuso que temos de compreender as tentativas altamente diversificadas nos diferentes Estados e seus arranjos políticos, institucionais e sociais que pudessem acomodar a crônica incapacidade do capitalismo de regulamentar as condições essenciais de sua própria reprodução.

O quase-colapso do capitalismo na década de 1930 fez com que as sociedades chegassem a uma nova concepção da forma e do uso dos poderes do Estado (o New Deal de Roosevelt foi todo pautado no keynesianismo).

Duas décadas depois de Ford implantar o fordismo, ele ainda estava em seu estágio inicial e só vai adquirir sua maturidade depois de 1945, mantendo-se mais ou menos intacto até 1973. Os padrões de vida se elevaram, as tendências de crise foram contidas, a democracia de massa, preservada e a ameaça de guerras intercapitalistas, tornada remota. O fordismo se aliou firmemente ao keynesianismo.

A subsequente mobilização da época da guerra também implicou planejamento em larga escala, bem como uma completa racionalização do processo de trabalho, apesar da resistência do trabalhador à produção em linha de montagem e dos temores capitalistas do controle centralizado.

O Estado teve de assumir novos (keynesianos) papéis e construir novos poderes institucionais; o capital corporativo teve de ajustar as velas em certos aspectos para seguir com mais suavidade a trilha da lucratividade segura.

O fordismo também se apoiou na, e contribuiu para a, estética do modernismo – particularmente na inclinação desta última para a funcionalidade e a eficiência – de maneiras muito explícitas, enquanto as formas de intervencionismo estatal (orientadas por princípios de racionalidade burocrático-técnica) e a configuração do poder político que davam ao sistema a sua coerência se apoiavam em noções de uma democracia econômica de massa que se mantinha através de um equilíbrio de forças de interesse especial.

De desenvolvimento lento fora dos EUA antes de 1939, o fordismo se implantou com mais firmeza na Europa e no Japão depois de 1940 como parte do esforço de guerra (foi consolidado e expandido no período do pós-guerra).

O progresso internacional do fordismo significou a formação de mercados de massa globais e a absorção da massa da população mundial fora do mundo comunista na dinâmica global de um novo tipo de capitalismo […] O fordismo se disseminou desigualmente, à medida que cada Estado procurava seu próprio modo de administração das relações de trabalho […] A expansão internacional do fordismo ocorreu numa conjuntura particular de regulamentação político-econômica mundial e uma configuração geopolítica em que os Estados Unidos dominavam por meio de um sistema bem distinto de alianças militares e relações de poder.

Houve insatisfações no processo, como na crítica das minorias excluídas e da racionalidade burocrática pelo consumo de massa padronizado. Devem-se acrescentar a isso os insatisfeitos do Terceiro Mundo com um proceso de modernização que prometia desenvolvimento, emancipação das necessidades e plena integração ao fordismo, mas que, na prática, promovia a destruição de culturas locais, muita opressão e numerosas formas de domínio capitalista em troca de ganhos bastante pífios em termos de padrão de vida e de serviços públicos (por exemplo, no campo da saúde), a não ser para uma elite nacional muito afluente que decidira colaborar ativamente com o capital internacional (p. 133).

Do Fordismo à acumulação Flexível

Uma série de fatores como a substituições de importações na América Latina, o movimento das multinacionais pulverizando o Sudeste Asiático e o fortalecimento econômico da Europa Ocidental e Japão no pós guerra desafiou a hegemonia estadunidense e contribuiu para queda na produtividade e da lucratividade corporativas depois de 1966, sinais da redução do poder norte-americano de regulamentação do sistema financeiro internacional que teve na desvalorização de dólar mais um fator (taxas de câmbio passaram a ser flutuantes).

O período de 1965 a 1973 tornou cada vez mais evidente a incapacidade do fordismo e do keynesianismo. Havia problemas de rigidez nos mercados, na alocação e nos mercados de trabalho (ondas de greve e problemas trabalhistas aconteceram entre 1968 e 1972).

O único instrumento de resposta flexível estava na política monetária, na capacidade de imprimir moeda em qualquer montante que parecesse necessário para manter a economia estável. E, assim, começou a onda inflacionária que acabaria por afundar a expansão do pós-guerra.

A tentativa de frear a inflação ascendente em 1973 expôs muita capacidade excedente nas economias ocidentais, disparando antes de tudo uma crise mundial nos mercados imobiliários. Somaram-se a isso os efeitos da decisão da OPEP de aumentar os preços do petróleo e da decisão árabe de embargar as exportações de petróleo para o ocidente durante a guerra árabe-israelense de 1973 (guerra do Yom Kippur). A forte deflação de 1973-1975 indicou que as finanças do Estado estavam muito além dos recursos, criando uma profunda crise fiscal e de legitimação.

A profunda recessão de 1973, exacerbada com o choque do petróleo fez das décadas de 1970 e 1980 um conturbado período de reestruturação econômica e de reajustamento social e político, a passagem para um regime de acumulação inteiramente novo, associado com um sistema de regulamentação política e social bem distinta.

A chamada acumulação flexível é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas, pois o mercado de trabalho passou por uma radical reestruturação. Devido ao aumento da competição e estreitamento das margens de lucro, os patrões tiraram proveito do enfraquecimento do poder sindical e da grande quantidade de mão de obra excedente (desempregados ou subempregados) para impor regimes e contratos de trabalho mais flexíveis.

O grupo central – que diminui cada vez mais – é composto por trabalhadores integrais de maior segurança no emprego (pode acontecer subcontratação por dispensa de trabalhadores do grupo central devido às crises). A periferia abrange trabalhadores em tempo integral com habilidades facilmente disponíveis no mercado de trabalho ou trabalho manual menos especializado (alta taxa de rotatividade) e trabalhadores em tempo parcial por tempo determinado, temporários tendo ainda menos segurança no emprego. Esses arranjos de empregos flexíveis não criam por si mesmos uma insatisfação trabalhista forte, visto que a flexibilidade pode às vezes ser mutuamente benéfica.

A transformação da estrutura do mercado de trabalho teve como paralelo mudanças de igual importância na organização industrial. Onde a produção podia ser padronizada, mostrou-se difícil parar o seu movimento de aproveitar-se da força de trabalho mal remunerada do Terceiro Mundo, criando o chamado “fordismo periférico”.

As pressões competitivas e a luta por um melhor controle do trabalho levaram quer ao surgimento de formas industriais totalmente novas ou à integração do fordismo a toda uma rede de subcontratação e de “deslocamento” para dar maior flexibilidade diante do aumento da competição e dos riscos (superar a rigidez do sistema fordista). O tempo de giro – que sempre é uma chave da lucratividade capitalista – foi reduzido de modo dramático pelo uso de novas tecnologias produtivas (automação, robôs) e de novas formas organizacionais (como o sistema de gerenciamento de estoques “just-in-time”, que corta dramaticamente a quantidade de material necessária para manter a produção fluindo).

A meia vida de um produto fordista típico, por exemplo, era de cinco a sete anos, mas a acumulação flexível diminuiu isso em mais da metade em certos setores (um significância do aumento do consumo).

O acesso à informação, bem como o seu controle, aliados a uma forte capacidade de análise instantânea de dados, tornaram-se essenciais à coordenação centralizada de interesses corporativos descentralizados. A capacidade de resposta instantânea a variações das taxas de câmbio, mudanças das modas e dos gostos e iniciativas dos competidores tem hoje um caráter mais crucial para a sobrevivência corporativa do que teve o fordismo. A desregulamentação e a inovação financeira – processos longos e complicados – tinham se tornado, na época, um requisito para a sobrevivência de todo o centro financeiro mundial num sistema global altamente integrado.

A ruptura, em 1971, do acordo Bretton Woods – de fixação do preço do ouro e da convertibilidade do dólar – foi um reconhecimento de que os Estados Unidos já não tinham condições de controlar a política fiscal e monetária do mundo. A adoção de um sistema de taxa de câmbio flexível em 1973 (em reação às maciças variações especulativas das moedas com relação ao dólar) assinalou a completa abolição de Bretton Woods.

Os novos sistemas financeiros implementados a partir de 1972 mudaram o equilíbrio de forças em ação no capitalismo global, dando muito mais autonomia ao sistema bancário e financeiro em comparação com o financiamento corporativo, estatal e pessoal. A acumulação flexível evidentemente procura o capital financeiro como poder coordenador mais do que o fordismo o fazia. Isso significa que a potencialidade de formação de crises financeiras monetárias autônomas e independentes é muito maior do que antes e o papel do Estado  como credor ou operador de último recurso se tornou muito mais crucial, pois houve a disseminação da imagem de governos fortes administrando fortes doses de remédios não palatáveis para restaurar economias moribundas (a crise de 1973/75 contribuiu para a gradual retirada do estado do bem-estar social e isso forçou os Estados a se tornarem mais “empreendedores”).

Esse aumento de competição (tanto nos mercados de trabalho como nos empreendimentos) se mostrou, é verdade, destrutivo e ruinoso para alguns, mas sem dúvida gerou uma explosão de energia que muitos, até na esquerda, comparam favoravelmente com a ortodoxia e a burocracia rígidas do controle estatal e do poder corporativo monopolista. Ele também permitiu a realização de substanciais redistribuições de renda, que favoreceram, na maioria das vezes, os já privilegiados.

 

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